sexta-feira, 30 de junho de 2017

Rodrigo Leão, Scott Matthew - That's life


Poesia de Rui Knopfli


O Ladrão de Versos

Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro do meu filho.




Telegrama

Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
 Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.


quarta-feira, 28 de junho de 2017

(In)quietude

O mundo acordou fechado
dentro de um corpo que se ajeita
atrás da sombra desfeita
e as mãos
libertas
num indefinível harmónio
de palavras
silenciadas

sementes antigas
sob as linhas da pele
ecos traídos de inquieta poesia
que teria sido.

Infinito o tempo
em que arrasto o dia
na memória fria de relógios tensos
sobreviventes no quarto decrescente
de um redemoinho
imóvel
perfidamente.

Brígida Luz
01.08.10

terça-feira, 27 de junho de 2017

A preto e branco




Consumimo-nos num abismo onde
desenhamos frases de arrependimento. E
tecemos histórias de absolvição

amarramos a luz ao abandono
porque não soubemos chegar a tempo
de ver a amargura das cinzas.

E os degraus a descerem
já sem corpo
já sem rosto

e nós retratos a preto e branco
escondemos as vozes
num jogo de sombras a desdizerem
a solidão dos dias.

BL
27.06.17





segunda-feira, 26 de junho de 2017

Dias de habituação

Trazemos nos olhos sementes
a povoarem silêncios que vivem nas palavras.
Gememos baixinho o cansaço das árvores ressequidas
repouso de sombras e fantasmas.
Deslizamos as mãos pelas paredes da memória
onde ressoam todas as vozes por cumprir.

Retornamos ao monólogo
sem pontes que nos atravessem
nem poentes que nos abracem.

É tudo tão absurdo no emaranhado
de raízes que nos apodrecem nas mãos.

Na impossibilidade de refazer
o encontro dos dedos
apagamos os lugares que ainda existem
irremediavelmente desabitados no corpo macerado do esquecimento.



BL

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Em letra pequena


Aprender a duração da tarde

sem que no vento

se suspendam as palavras.



Reconstruir o espelho

e

no alvoroço da espera



entrar por dentro do infinito

e recolher no tempo

as rosas prometidas.



As rosas prometidas.



Desfolhadas em sílabas

divididas em hemisférios

de neve e lava.



Uma história a nascer.



Ainda sem um ramo de mar

ou uma rua respirável.



Em letra pequena

mas com cheiros de planície.



E os rostos facetados

do silêncio e da nostalgia.



A escutar as vozes do indecifrável

a cerrar lentamente a luz

que se verte dos olhos



como um rio que não correu.



Brígida Luz

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Todos os dias



Um ponto sem retorno. A saudade
a chorar baixinho
e a mendigar pontes antigas
abandonadas por dentro dos lábios.

Um silêncio absurdo corre pelas águas
da insónia

e o tempo a mover-se
ávido de luz
e da proximidade das raízes.

Escreves a palavra
mãe
e dizes o indizível

na linha reta da sílaba.

BL

terça-feira, 20 de junho de 2017

Dias assim e assim




Dias assim e assim

Pronunciaste-te distância. Estabeleceste uma linha divisória irreversível. E eu nem sempre sei a que lado pertenço. Lembro-me daquelas plataformas de bom comportamento, de que ouvi falar em sessões de catequese. Numa idade em que ainda tinha uns olhos arregalados para o mundo. O céu, o limbo e o inferno. Não me parece que em momento algum haja espaço para mim num recanto do céu. Pelo que ouvi dizer. Nesses tempos de outrora e em tempos bem mais recentes. Estou mais próxima do inferno. Pequei por palavras, atos e omissões. Pelo que fiz. Pelo que não fiz. Às vezes, pelo próprio facto de existir. Pelo que _ te _ ouvi dizer. Ignorei o sonho. Distorci a realidade. Passei ao lado das minhas atribuições. Desvalorizei sinais. E este é um dos meus pecados mais graves. Que me atira para o inferno de quase todos os meus dias. Dias de fogo. E de água. Em dias de limbo. É quando se sucedem os pontos de interrogação. É quando os braços pendem ao longo do corpo. É quando os olhos se apertam e se fazem pequeninos, pequeninos e não conseguem avistar terra para cultivar. Mas existe uma linha comum a todos os meus dias. Terminam todos eles numa queda desamparada para a linha vazia do horizonte.


BL

segunda-feira, 19 de junho de 2017

A linguagem do sol


Nunca soube onde guardar o silêncio
que surge numa tarde vagarosa
em que o sol tem tantas palavras para dizer.


Palavras que entreabrem a janela da tarde
e deixam que o tempo atravesse a rua de água doce
onde os rostos se debruçam
e as vozes pronunciam os nomes
em que as memórias persistem.


Pouco sei das palavras do sol. Pouco sei.

Entrego as minhas mãos ao silêncio da tarde
inclinada sobre a folha em branco.


Olho-me agora no verde das árvores
num esforço vertical
para me reconhecer.


Pouco sei das palavras do sol. Pouco sei.

BL

domingo, 18 de junho de 2017

domingo - 18.06.17



sábado – 17.06.17


O sol ficou cinzento. E o uivo do vento ergueu em chamas o grito e o lamento. A pele da terra, cárcere de nomes e nomes, perdidos num horizonte de labaredas. Cinzas de morte e de dor a cobrirem um chão em fuga. Semeado de vultos. E de escuridão. E de silêncio. A névoa no interior das palavras. O pânico por dentro das vozes. O sangue a romper os olhares. E todos podemos tão pouco. E todos sentimos a insensatez da nossa “vã glória de mandar”. E todos sabemos do nosso lugar no cosmos. Infinitamente pequenino. Tão assustadoramente desimportante.

BL

sábado, 17 de junho de 2017

17.06.17 - sábado

17.06.17 – sábado

Sábado. O ar quente e baço, a arder, irrespirável. O corpo a dobrar-se para o interior do pensamento. A amizade. O ceticismo. A timidez. A atravessarem tempos e lugares. A descobrirem trilhos, raízes e folhas caídas. Mortas. Troncos secos, feridos. A dor no olhar, as cicatrizes nas mãos. Tantas asas brancas, tanto céu azul! E hoje. O tempo a arder, irrespirável. Tombo para dentro de mim. Palavras a preto e branco. A fluirem nos verdes dos prados. E os verdes a serem castanhos, nuns olhos de veludo triste. Voltar atrás... para quê? A rua é ausência. E o tempo é silêncio.

BL

bom fim de semana


sexta-feira, 16 de junho de 2017

No branco que sobra



Num emaranhado de cores escrever
um outono iluminado
a claridade
sem o peso do que foi dito.
Ser uma só fala
um sopro a alinhar a palavra
sem mãos salgadas.
Ser gesto urgente
folha
vento incandescente.
Ou talvez um pouco de tudo
rotação translação
força centrífuga
a vida
para além do corpo.
Num tempo improvável
recuperar texturas de ausência
nomes eternos
fragmentando cardos indecifrados.
Num movimento de asas
atravessar a fluidez do silêncio
ou a memória da luz.

No branco que sobra.

BL
16.06.17

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Sombras de nós




Quando a cidade se faz silêncio
e o olhar uma paisagem de outrora
as marcas exibem histórias
e
de súbito
sentimos que somos grito adormecido.

Ilusória cosmética em que nos abandonamos.

BL 

domingo, 11 de junho de 2017

Joan Baez


Voltar atrás...




Fiapos de luz enclausurada
levam-me a uma infância de uniformes e
filas p'ra tudo
e p'ra nada.

De narizes pontiagudos
pendiam
vestes negras

e enquanto exibiam irónicos sorrisos
plantavam metamorfoses arbitrárias
que fugiam por corredores que conduziam
aos dois gumes da mesma faca.

Tinham o queijo
também
receitas forno e fogão.

Regiam compassos indecifráveis

e

foge foge foge
alguém gritava.

Mas eu caí.

Fiquei p'ra trás.

BL
11.06.17

Desdobrável



Acumulo tempo em que não sou. “Temos de valorizar o que temos” _ dizem-me. Mas aquilo que tenho não é aquilo que sou. Não sou uma mulher de Fé. Não tenho à minha espera um paraíso recheado de compensações. Não. Tenho o aqui e o agora. Porque sou cada vez menos aquilo que sou. Desdobrável. Por fora. Lá dentro acumulo tempo. Sei da minha pequenez. Do meu lugar pequenino. Sei de um mundo maior. Sei de milhões de criaturas que não têm. Que não são. Sei do poderio dos donos do mundo. E dos seres pequeninos. Como eu. Às vezes, não passo de uma pequena ave que do ninho tombou. Sou a fragilidade do que não posso, do que não sei. Sou a desilusão do que me é retirado. Do que me faz dobrar mais e mais para dentro de mim. Onde acumulo tempo. E silêncio. E constelações de estrelas cadentes. Sei da fome. Sei da guerra. Sei do meu lugar pequenino. Onde acumulo o tempo. Em que não sou.

BL
11.06.17

Apontamentos

A um canto, a arrogância de um deus da obesidade, servido por um exército de peões, irrepreensivelmente submissos e fiéis.


BL
11.06.17

11.06.17




Acariciando o azul, o bailado de uma nuvem. Feita de plumas, pintadas de vento e de verão.

BL

sábado, 10 de junho de 2017

10.06.17 - sábado

10-06.17 – sábado

Hoje, tudo o que eu precisava era de me sentir “filha”. Ser “filha”. Apenas. A saudade de ser “filha”. De ter a mãe e poder chamá-la. Saber que ao dizer “mãe”, ouviria uma resposta, que poderia ser somente uma sílaba. “Hum!” _ diria a minha mãe. E ela estava ali, comigo, perto de mim. E então eu poderia começar a minha ladainha de desabafos que são só para mães ouvirem, porque não existem outras pessoas que estejam preparadas para isso. Mãe é sangue, é carne viva. É alma, coração, é dor, é amor. Descobre-nos em cada hesitação da voz. Segura entre as dela a nossa mão, cuida de nós. Lê-nos o olhar. E dá-nos o colo, sem hesitar.
Há muitos anos que não sou filha. E “ser filha” era tudo aquilo de que eu hoje precisava.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Por favor

Peço à pessoa que copiou o meu texto  "O céu coberto de nuvens" que dele não se aproprie indevidamente.

Obrigada


BL

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Bob Dylan


O céu coberto de nuvens





Posso estender as mãos entre a ilusão

e a certeza daquilo que permanece. Conversar

com a mudez das horas



habilmente concertadas em círculos concêntricos

a prolongar o jogo das ilusões.



Procurar-te no lado de dentro

das palavras. E falar-te das

verdades irrecuperáveis



centradas nos desafios ou nos fascínios

que se foram.


Ou então regressar ao pólen



das coisas tangíveis

[ a roupa no varal a mesa posta ]

e nelas arredondar o tempo longo

às vezes triste



e com ele caminhar atenta às arestas

cortantes que vierem.





BL
08.06.17

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O regresso do tempo



Voam no azul as aves brancas
recortando o tempo certo
atravessam do sonho as vestes
meia dúzia de palavras
aninhadas em ramos suspensos
das estrelas

essas que implodem o vazio dos ventos
arautos da boa nova
bússola dos harpejos da memória

o jardim é azul
a porta muito ampla
evoca sobre as tábuas o círculo do sol
explode na planura quente dos vinhedos

o céu ondula
é real o azul das águas na labareda dos olhos
desenhando o horizonte

é azul o sopro do vento
quando pressente o regresso do tempo.

BL
18.09.10

domingo, 4 de junho de 2017

Que resiste




É que metade de mim está a secar.
As veias,
os pulmões,
o coração.
O sangue mirra,
a alma seca.

É que metade de mim é ausência.
Um ramo que se foi soltando,
soltando,
até que quebrou.

E voou.
Partiu,
com a ventania do desencanto.

Ficou um silêncio espesso,
uma escuridão amarga,
que desaba dias de torrentes de chuva.
Ácida,
atravessada por uma lama escorregadia,
onde tropeça e se arrasta a outra metade de mim.

Que resiste.

BL

Eric Clapton


Pode ser...

Eric Clapton Unplugged”
e as palavras que escrevi há milhares de anos. Porque nada se alterou. As mesmas paredes a escorrerem vazios, as mesmas gavetas a bafiarem memórias. Não posso falar de amores-perfeitos nem de manhãs coroadas de sol, a acordarem nascentes de água límpida a saltar de pedrinha em pedrinha. Não posso. As sílabas que me saltam nas pontas dos dedos são melancólicas, com inclinação para a nostalgia. Perseguem-me, seguem-me os passos, coladas à minha sombra. “funny, funny feeling”, canta Clapton. Pode ser. Pode ser...


BL

The sound of silence


sábado, 3 de junho de 2017

La Roulette Rustre


Consegues ouvir?



A inquietude do vento
em busca de um instante vagaroso.

As palavras a estremecerem
a nomearem a noção do olhar na espuma das águas

rio improvável à sombra de pontes
atravessadas por uma nesga de sol.

A luz é tardia
e não dormem os pássaros no diálogo das árvores.

Ao longe
vozes que chegam em soluços
de poentes.

O tempo a parar a meio
do declive
no outro lado do cais.

Lentamente me abrigo no rosto
quente do crepúsculo

o perfil da noite a deslizar me sobre os ombros
devolvidos à flutuação do silêncio.


BL
03.06.17

sexta-feira, 2 de junho de 2017

A flor




Um incêndio
no traço vermelho da tatuagem.

A tua vida
em dois lugares do tempo.

A chave irrecuperável
ou a visão assimétrica do chão em que te perdeste.

Na face branca
as coisas a acontecerem
os movimentos de que um homem se orgulha.

A luz
ou a luminosidade de um nome gravado na tua pele

no ponto de encontro entre a morte
e a vida.

A flor novíssima
provável primavera a correr-te nas veias
talvez prenúncio da metamorfose dos teus silêncios.


BL
02.06.17