segunda-feira, 31 de julho de 2017

Poema de vida inteira

Não há poema de vida inteira.

Há a meia-vida que falta


nas gotas de chuva que escorrem na vidraça

e a outra meia que sobra

nas bagas salgadas


que cristalizam na minha face


baça.



BL
29.04.13

segunda-feira, 24 de julho de 2017

De sentido único


Dispersas a luz em movimentos
compassados.
Os lugares a ficarem progressivamente
irreconhecíveis
na descoordenação do olhar ou no
entorpecimento dos dedos.
Vozes anónimas apropriam-se
dos nomes e dos rostos que me decifravam
o azul magoado. Ou os soluços
da pele silenciosa.
Não sei como adormecer o frio
sobre os ombros.
Existe ainda um gesto
breve
nas horas finais de uma superfície
branca.
É talvez um apelo duvidoso do silêncio
dos braços
ou o poema vazio de uma última canção
proibida.

BL
24.07.17

sábado, 22 de julho de 2017

Philip Glass


Entretanto florescem os girassóis


A instabilidade dos espaços a desdobrarem
falhas e desabamentos.

[ Versos inabitáveis corporizam
luz-memória a desvendar madrugadas. ]

Mãos cansadas aguardam um tempo de permeio
oculto num ponto de partida
onde o céu me sabia de cor e sonhava as flores da utopia
que tempestades secaram.

Nada sei do mundo
e aprendo com o sol as estações
que se renovam ou o movimento
das sombras que ascendem no horizonte.

Dentro do coração da palavra todas as
chaves serão minhas. O mundo
nasce lá fora alinhado no vento
das manhãs pintadas de fresco. O recomeço das cinzas
ou da viagem da alma
primeira guardiã do tempo.

BL
22.07.17

quarta-feira, 19 de julho de 2017

A árvore impossível


Atravesso palavras inocentes

num monólogo que quer remover o medo.

Articulam-se por si próprias

não me pertencem

e delas retenho apenas um eco longínquo

que me desdobra na multiplicidade de nomes

consumidos no esquecimento.



Junto-me a mim e suspendo

a reconstrução da árvore impossível que eu

adubava debaixo dos meus enganos.

Coberta de pontos de interrogação empurrados

por um vento amargo para morada incerta.



Sem olhares para trás amarraste-me o corpo

fragmentado em dolorosa invisibilidade.



Sem olhares em frente vais baixar a tua voz



e



pausadamente



podes dizer-te que morri.


Brígida Luz
19.07.17

terça-feira, 11 de julho de 2017

Tardia


Chego tardia àquilo
que sempre fui.
Curso de rio traçado
na fluidez de águas inquietantes.

Ergo o poema em palavras inibidas
a descerem de tempos inocentes
ou desenho pássaros no olhar resignado
de uma voz distante. A falar
de portas abertas à lucidez de um nome
que partia devagar.

O silêncio a percorrer mapas de escuridão. Sombras indecifráveis.
A solidão dos rostos que não atravessaram
a linguagem dos muros.

A luz refratada
refletida.
A luz a acontecer
num tempo muito longe daqui.

E eu a chegar
tardia.

BL

domingo, 9 de julho de 2017

Improbabilidades


Podia lembrar e esquecer
a casa cheia de noite,
a respiração turva das palavras,
se aprendesse a semear campos pontilhados de sonhos,
nascidos na claridade dos dias.

Podia entender-me
nos gestos que sussurram a minha imagem
nos rios em que me deito,
se não me atravessassem  silêncios irrepetíveis
do tempo inexistente,
no tudo que é o instante.

Queria até beber dos teus improváveis rituais,
se me estendesses um regaço de águas mansas
em preguiçosa avenida de aloendros e garças reais.

BL


sexta-feira, 7 de julho de 2017

Siga em frente




Nada do que digo ou escrevo
tem conteúdo ou função.
Palavras, leva-as o vento
e o que sobra... ilusão.

BL
07.07.17




quinta-feira, 6 de julho de 2017

Ser lugar

Está nos braços de um tempo adormecido
a verdade
da rua onde pulsamos
ou
às vezes abandonamos 
a imensidão de um regresso
a serenidade de um cais.

Porque
há um ponto que nos chama.

Acumulamos enganos
e silêncios instalados

damos a volta à saudade
como se mergulhássemos a vida inteira
no olhar do entardecer.

Vivemos no casulo dos pequenos
nadas

os ombros a tocarem o chão
enquanto dobramos a dor para dentro da pele.

E
há um ponto que nos chama
à procura de um lugar.


BL
06.07.17





Lua cheia de saudade


Deixo que o poema sobrevoe a saudade
ressuscito o teu rosto
do tempo
que desistiu de passar.

A meus pés
um abismo de lugares vazios
onde eu sento as sombras
dos sonhos que chamam
pela esperança
pelas luas
pelas dunas
em que a noite se deitou
e se tornou fios de luz
dentro de nós.



BL





quarta-feira, 5 de julho de 2017

A mudez dos pássaros


O silêncio escorre pelos sulcos do tempo
rompe os ruídos da noite.
Encaro os espelhos resignados
e arrumo os meus sonhos
de tranças desfeitas e olhares demorados.

Sinto as pálpebras vergadas
às paredes indecifráveis da memória
sílabas confusas estilhaçam
o centro da palavra.

Recorto vultos em páginas
opacas
em busca de caminhos à solta
e raízes ao vento
sementes do pensamento.

Em vão fujo de mim
sem rumo na linha do horizonte
nem céu que sobrevoe a mudez dos pássaros.



BL

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Caixas cheias de nada

Desarrumou o tempo e partiu. Desagregou as memórias em pedacinhos minúsculos. Talvez porque, desse modo, lhe fosse mais fácil retirá-las da pele. Dos olhos. Dos braços. Do coração. Assim, desintegradas. Caídas no chão. Lentamente. Uma por uma. Sempre lhe foram um peso, as memórias. Rodeavam-no de pássaros em fuga. Enchiam-lhe o corpo de deserto. Nos olhos, um imenso, infindo deserto. Às vezes, recuperava uma . Ou outra. Polia-a, lapidava-a. Sentava-se numa pedra e, do seu interior, extraía pensamentos simples. Sorrisos luminosos. Tranquilos. Ilusórios. Tranquilamente ilusórios. E eu ficava inteira, dentro da ilusão. Mas, um dia, precisou de partir o tempo. De encher os olhos de pássaros. De estilhaçar o reflexo. E cobrir o chão de vidrinhos pontiagudos. Encheu caixas e caixas de tudo. O chão ficou coberto de vidrinhos pontiagudos. E deixou caixas e caixas cheias de nada.


Brígida Luz
03.07.17

domingo, 2 de julho de 2017

Às vezes, queres chorar


Dentro dos teus olhos há um abrigo
onde o silêncio se desarruma

e nomes, nomes antigos
em busca do prolongamento
das tuas mãos.

Ainda não sabes enumerar
os horizontes onde resistes
à erosão do vento seco.

E resistes. Aos braços inteiros
onde o sangue estremece

ao lugar à mesa em que o domingo
cresce e abre a janela

e deixa rolar o verão
ou respirarem as borboletas.

Assim vives. Assim escolhes
essa luz vagarosa

voltada para dentro das pálpebras.
Às vezes queres chorar
mas os lábios não deixam

esquecidos das texturas invisíveis
e inexplicáveis

de onde irrompem os lugares
e as memórias a que pertencemos.

E por onde silenciosamente caminhamos.

BL