terça-feira, 30 de setembro de 2025

Mas tudo arde

 




Não há fogo
mas tudo arde.

Os dias acumulam-se
como folhas húmidas
sem cor
sem som.

Dentro de mim
há uma cidade abandonada
com luzes acesas
em casas vazias.

E ainda assim
continuo a acender velas
como quem espera

tocar o silêncio
e que a escuridão aprenda a falar.





BL

30.09.25





domingo, 28 de setembro de 2025

O último suspiro da página

 




 

Talvez o último suspiro

da página.

O céu não acolhe asas.

Lembranças anónimas

dormem entre os dedos.

 

Talvez um limiar

entre o visível

e a ausência


[essa presença informe

que paira entre o indizível

e o que se perdeu]

 

entre o voo

que não acontece

e o silêncio

que se instala.

 

Nesse instante

quando o tempo nos suspende

e tudo se desfaz em cinza.






BL

28.09.25





domingo, 21 de setembro de 2025

Habito-te






Tu és lugar.
Não te atravesso.
Habito-te.

 

Habito-te
como quem habita o tempo.


Sem pressa.
Sem mapa.


Com o corpo inteiro

entregue à deriva




BL

21.09.25




 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

O centro do relâmpago

 






A paisagem do mundo fechou-se em círculo
quando te vi

imóvel

ao fundo


como se o caos tivesse uma pele lisa
e nela repousasse a harmonia.

 

Sob a água do lago
a quietude respirava o teu nome.
Montanha em silêncio
força oculta no teu gesto mínimo.

 

Há em ti coisas que só o tempo revela.
Filigranas de sombra
linhas que o olhar não alcança
sem se perder.

 

Ceguei por te ver demais
por tocar o centro do relâmpago
em noite sem nuvens.


Agora

há cores que se movem
dentro dos meus olhos
quentes e frias


como o teu perfume na trovoada
que chega mansa no fim da primavera.

 

Deito-me sob a árvore onde o fruto
nos deu a boca.


Bagas brancas caem como promessas
à volta do nosso silêncio.
A luz trespassa a sombra
e encontra a tua pele.

Um pássaro soprou-nos um segredo
em troca de amor.

 

E eu vi tudo isso
antes de cegar por ti.






BL

19.09.25





 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

No intervalo entre os versos

 






A palavra já foi dita
rasgada
curvada
mastigada.


Agora
permanece.

 

Não há mais o que escrever.
Há o que escutar
no intervalo entre os versos.

 

E nesse espaço


onde o tempo se dobra
sobre o que não foi caminho


a poesia ainda respira.






BL

18.09.25






quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Fica-me no silêncio

 






Fica-me no silêncio
sussurrou a pedra.
Não havia passos.
Nem sombra.
Só a pedra
[o peso]
Guardando no frio
a forma antiga do toque.





BL

17.09.25












terça-feira, 16 de setembro de 2025

poema de segunda-feira


 



um sopro de vidro estilhaça
o tempo

escorre em véus
entre os dedos

que já não tocam


a memória descalça

caminha
pelo chão onde o azul

se esqueceu

 

há um eco

que não se cala

no fundo

da chávena vazia


o corpo desaprende

o gesto
e a sombra

aprende a ficar

 

a casa respira em branco
os móveis fingem presença


a luz hesita

no contorno
da ausência

que se senta

 

um gato observa

o nada
com olhos de quem sabe
que o mundo se parte
sem ruído





BL

16.09.25









segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Claridade de dentro

 



 

A saudade

com sabor a terra molhada

secava devagar
como pedra que chora o seu musgo
resistindo ao calor da manhã.

 

O vento tocava as folhas com ternura
e a saudade


aquela saudade enterrada na pele
abria os olhos à luz.

 

Havia claridade
feita de sombra fina
de raízes que brilham por dentro
quando o tempo as chama.

 

No sabor da terra molhada
ficavam restos de passos
e promessas germinadas


como se a ausência florescesse. 




BL

15.09.25










sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Cântico das ruínas

 


 




Ergueste o teu destino
num claustro anónimo.

 

Rezaste às sombras.
Não te responderam.

 

Velas apagadas
pelas mãos do tempo.

 

Deixaste no altar
aquilo que não quiseste

 

ver do mundo.




BL

12.09.25




quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O nome da luz

 





Chamaste-me

sem voz
e eu ouvi.


Ouvi
pela ausência

que deixavas em mim.

 

Segui o rasto
como quem sente o cheiro

da terra molhada.


E encontrei-te

onde o mundo termina.

No lugar

onde o teu nome começa.

 

E vinha a luz.

Partia de ti.


E eu

que já não sabia ser
aprendi a existir
porque te reconheci.




BL

10.09.25






terça-feira, 9 de setembro de 2025

Mas tu vieste

 







Fui sombra
antes de ser nome.
Caminhei entre vozes que não sabiam chamar-me.
O chão recusava os meus passos
e o céu
tão alto
parecia feito só para os que nunca caíram.

 

Mas tu vieste
com o tempo nas mãos
e o silêncio nos olhos.


Não disseste nada.
E foi tudo.

 

A tua presença era ponte
era travessia
era o sim
que o mundo me negava.

 

Deitaste-me entre as árvores
onde o vento sabe segredos antigos.


E ali
entre o murmúrio das folhas
aprendi que viver
é aceitar morrer um pouco
sempre que o amor nos chama.





BL

09.09.25




segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Última conjugação

 






Parto para o silêncio último
a morada sem janelas.
Interior.
Rocha.

 

Devagar
recolho os ecos

dos versos

que não escrevi.


Versos em espiral
os que amaram em voz baixa
os que se dobraram ao tempo.

 

Aceito as vírgulas

que me suspendem o fôlego
as sílabas que me lavam

o sal do sangue.

 

Sou agora
o intervalo entre dois verbos.


Sou
o poema que se desfaz
na boca do vento.




BL

08.09.25






domingo, 7 de setembro de 2025

Quando os corpos calam as estações


 






É assim o mapa da ausência.


Desenha caminhos

com dedos trémulos
mas esquece

os nomes das cidades.

 

É assim o corpo sem norte.

 
Carrega o peso das estações
sem saber onde começa o inverno.

 

É assim o corpo sem casa.

 
Veste paredes

como quem procura abrigo
mas encontra somente o frio de móveis esquecidos.

 

As mãos procuram o que já foi dito
mas apenas encontram o eco dos gestos.

 

É assim o tempo do corpo.


Marca os dias com rugas suaves
e os sonhos com calendários rasgados.

 

É assim o corpo do tempo.

 
Na penumbra das horas quebradas
cultiva silêncios

como flores secas
e espera que a memória os regue.





BL

07.09.25





sábado, 6 de setembro de 2025

A sombra do vento na cortina da manhã

 




O vazio dança entre as paredes.

 

A luz a entrar

oblíqua

pela cortina rendada.

 

O ranger do soalho conta histórias
e o relógio murmura os minutos

com voz de avô.

 

O eco de passos que já não voltam
e o aroma quente que abraça os móveis

 

O café a fumegar

na chávena de porcelana gasta.

A memória da tua mão

a servir-me
e o teu riso

a morar no silêncio da casa.

 

O cheiro de domingo

[bolo de laranja e café forte]
a cozinha cheia de sol

e saudade.

 

A saudade.
Um bordado antigo

no encosto da cadeira.





BL

06.09.25





quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Regresso

 





Morri três vezes
antes de aprender o contorno da tua ausência.


Fui terra

fui pedra

fui silêncio.


E tu

com mãos de luz
vieste buscar-me.

 

No fundo do chão
onde o tempo não respira
a tua voz sibilava
como vento entre raízes.


E eu

cega de mim
vi o teu rosto
antes de abrir os olhos.

 

Deitaste-me no alto
onde o mundo se curva

para escutar.


As pedras da serra
guardaram o meu corpo
como quem guarda promessa.

 

Cantaste-me ao ouvido
com a voz que só os mortos reconhecem.


E eu

renascida
não temi perder-te outra vez.




BL

04.09.25





quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Apenas estão

 





Quando o sol me chama
numa manhã de inverno
as árvores

despidas

respondem primeiro


com os seus braços nus
erguidos em prece

ou em protesto.

 

Não há folhas a esconder segredos
nem sombras

a disfarçar o tempo.


Só o tronco

a pele rugosa
e o silêncio

a crescer entre os galhos.

 

Elas não pedem nada.


Apenas estão.
Como quem já aprendeu
que a beleza também mora
naquilo que se perdeu.

 

E eu

olho-as

assim
a sentir a força que existe no despojamento.


E sinto que talvez o sol me chame
não para me aquecer
mas para me lembrar
que existe vida

mesmo na espera.




BL

03.09.25





segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ajuda-me a ordenar este caos

 





Começo pelo telhado
porque é lá que o céu me toca.
Lanço as telhas ao vento
e elas pousam como pássaros
à espera do teu regresso.


Não sigo planos
não obedeço à gravidade das ideias.
Primeiro o que sinto
depois o que faço
e só então [talvez] o que penso.


As vigas vêm depois
como braços que aprendem a abraçar.
A base sobe devagar
como quem aprende a ser chão
depois de ter sido nuvem.


As leis do mundo não me servem.
As minhas estão por escrever
com tinta feita de instinto
e papel arrancado ao tempo.


Construo ao contrário
porque só assim posso ser inteira.
Começo pela casa que me protege
e acabo no rascunho que me revela.


Se vieres
traz contigo o silêncio e a coragem.
Ajuda-me a ordenar este caos
onde tudo está fora de lugar
mas tudo me faz sentido.






BL

01.09.25