Vamos moldar palavras
como quem molda o vento.
Como se o poema tivesse
escutado o teu silêncio
antes de nascer.
BL
29.08.25
Vamos moldar palavras
como quem molda o vento.
Como se o poema tivesse
escutado o teu silêncio
antes de nascer.
BL
29.08.25
os que caminham à margem
não olham para trás
nem para dentro
carregam relógios quebrados
e promessas por cumprir
sabem que não têm todo o tempo
mas fingem que o silêncio não pesa
na pele
cicatrizes de escolhas
feitas à pressa
e no fundo dos olhos
aquele resto de luz
que ainda não se apagou
BL
29.08.25
O chão é cinza
o céu um véu de ferro.
E
ainda assim
há raízes que se recusam
a morrer.
A esperança sussurra
pulsa
como um coração escondido
num corpo ferido.
Há caos
há vento que arranca portas
há noites que não acabam.
Mas há mãos
que seguram outras mãos
olhos que procuram o azul
quando tudo é escuridão.
E há quem plante
mesmo sem saber se virá a colheita.
Quem canta
sem plateia.
Quem escreve
sem saber se alguém lerá.
Porque a esperança
é esse gesto pequeno
que desafia o abismo.
É flor que nasce
no meio da pedra
no meio da ruína
onde o tempo se desfaz em poeira.
BL
28.08.25
Fiquei a olhar o lugar onde
estavas
como quem espera que o vento traga o teu nome.
A luz atravessava os ramos da figueira
e fazia do teu rasto um brilho breve.
Os que partiram vieram sentar-se
comigo
com os olhos cheios de histórias e gargalhadas antigas.
Trouxeram o cheiro do pão quente
e o rumor das tardes em que éramos muitos.
As mulheres que nos embalaram
ainda cantam baixinho no fundo da memória.
Os homens [imóveis] guardam o tempo
como quem guarda sementes no bolso.
No último dia em que te vi
a chuva caía como quem não quer molhar.
O campo estava meio seco meio lembrança.
Não fui até à janela.
Fiquei a escrever-te com os olhos fechados.
Guardo as folhas no fundo da gaveta
junto às coisas que não se dizem.
Se um dia as leres
é porque voltaste ao lugar onde o silêncio sabe bem.
BL
28.08.25
E no fim
quando tudo estiver digerido
restará apenas o vazio
cheio de mim.
BL
26.08.25
Se algum verso te morder por dentro
ou te acender uma luz inesperada
deixa que ele fique a marinar
dentro de ti
como um vinho encorpado
ou um silêncio bem guardado.
Porque há palavras
que não se dizem.
Elas escorrem
pelos olhos.
BL
25.08.25
Dia zero
A manhã escorre pelos ouvidos. Não há sol, só rumores. Escuto o tempo como quem
lê um livro sem capa.
Coordenada perdida
As metáforas morreram ontem. Enterrei-as debaixo de uma vírgula. O silêncio floresce
melhor em terreno abandonado.
Fagulha
Escrevo como quem treme. As mãos não procuram beleza. Procuram sobrevivência.
Inventário da ausência
Tenho uma bússola que aponta sempre para dentro. Cada verso que escrevo é uma
tentativa de desvio.
Ritual
Antes de escrever, acendo uma dúvida. É o meu incenso. A linguagem responde com
fumaça.
Confissão
Feri tantas palavras, tentando tocá-las. Hoje, apenas encosto o ouvido nelas.
Talvez um dia me contem o seu segredo.
Noite sem idioma
A escuridão não fala. Apenas observa. Caminho por dentro dela, como quem
aprende a silenciar a gramática dos medos.
Mapa rasgado
Abri o mundo e ele gritou. Tentei colá-lo com versos, mas cada linha era um
corte. Navego agora pelo avesso do papel.
Relatório de sombras
Há sombras que sabem mais de mim do que a luz. Seguem-me com paciência,
corrigem os meus passos. São elas que editam os rascunhos que chamo “eu”.
Epílogo
O mundo ainda existe. Talvez por causa daquele erro ortográfico que deixei
escapar.
BL
25.08.25
Esta noite
decidi nadar no
céu.
As nuvens eram feitas de vidro
e um peixe
com asas de papel
ensinou-me a
respirar palavras.
A cidade flutuava
cheia de portas sem
casas
e janelas que mostravam
memórias
de quem nunca
existiu.
No quarto
em espiral
as paredes
conversavam baixinho
em dialeto de
sombras
e o chão pedia-me
para andar de costas.
Vi-me ao espelho.
Era uma árvore com
corações pendurados
cada pulsação um
poema esquecido
que o vento lia em
voz alta.
E quando acordei
sob um teto de
aurora boreal
soube que os sonhos
só existem
para nos ensinarem
a acordar devagar.
BL
23.08.25
Disseram-me:
“Não abras o livro que sangra.”
Mas eu abri.
Com dedos trémulos e olhos em febre.
E lá estavas tu
em cada linha que me queimava a memória.
O
escritor avisou:
“Não escrevas. A tua dor é demasiado bela.”
O alfarrabista gritou:
“Queima tudo, ou serás devorada pelas vozes!”
A
folha vincada a quente.
A folha vincada a quente.
Repito
como
quem reza
como quem tenta apagar o nome do desejo.
Fui ter contigo como o sal vai à
ferida.
Como o silêncio invade o quarto depois do grito.
Como o mar engole o rio e nunca o devolve.
Agora
pesam-me os olhos.
BL
22.08.25
O tempo é casa
com portas que rangem
e janelas que guardam
o cheiro dos dias.
Tem paredes gastas
onde encosto a memória
e um sótão
cheio de silêncios empilhados.
Há quartos
onde ainda mora a infância
e corredores
onde ecoam passos que já partiram.
O tempo é casa
e eu sou hóspede
de mim mesma.
Às vezes arrumo
as gavetas do passado
ou deixo o presente
a secar na varanda.
Mas nunca saio
sem deixar
a luz acesa.
BL
20.08.25
Há uma
dança na margem
um equilíbrio precário na beira da queda.
Anda comigo.
Vamos correr sobre a lâmina do instante
onde cada passo é quase queda
e cada queda é quase voo.
Não olhes para trás.
O passado desfaz-se como névoa.
Correr é cair com intenção.
E o que nos salva é o passo seguinte.
Tu e eu
em queda contínua
sem tempo para medir
mas tempo suficiente para sentir.
BL
18.08.25
Não
era falta.
Era húmus.
Matéria antiga
a
respirar sob os pés.
O
cheiro subia em espirais
como se a memória tivesse raízes
e a ausência germinasse em cada gota que caía.
Era o chão que falava
num dialeto de silêncios
de folhas que tocaram corpos
e nunca esqueceram o contorno.
Tudo era lento.
Como se o tempo
encharcado
escorresse pelos sulcos da pele.
E eu
meio lama
meio lembrança
ouvia a chuva falar
em sílabas estranhas
como se guardasse segredos
que só o vento entendia.
BL
16.08.25