Fiquei a olhar o lugar onde
estavas
como quem espera que o vento traga o teu nome.
A luz atravessava os ramos da figueira
e fazia do teu rasto um brilho breve.
Os que partiram vieram sentar-se
comigo
com os olhos cheios de histórias e gargalhadas antigas.
Trouxeram o cheiro do pão quente
e o rumor das tardes em que éramos muitos.
As mulheres que nos embalaram
ainda cantam baixinho no fundo da memória.
Os homens [imóveis] guardam o tempo
como quem guarda sementes no bolso.
No último dia em que te vi
a chuva caía como quem não quer molhar.
O campo estava meio seco meio lembrança.
Não fui até à janela.
Fiquei a escrever-te com os olhos fechados.
Guardo as folhas no fundo da gaveta
junto às coisas que não se dizem.
Se um dia as leres
é porque voltaste ao lugar onde o silêncio sabe bem.
Rasgo
o silêncio com dentes de vidro
mastigo memórias como carne crua.
O tempo escorre viscoso pelos
cantos da boca
engole gritos inaudíveis.
A dor
tem sabor de ferrugem e
relâmpago
arde na língua como segredo maldito.
Mas eu como.
Como até os ossos da ausência
até os espinhos da culpa
até aquele nome que
nunca mais chamei.
No
banquete da alma sou
fera e penitente
devoro o que me destrói
com a fome dos que não esquecem.
E no fim
quando tudo estiver digerido
restará apenas o vazio
cheio de mim.
Dia zero
A manhã escorre pelos ouvidos. Não há sol, só rumores. Escuto o tempo como quem
lê um livro sem capa.
Coordenada perdida
As metáforas morreram ontem. Enterrei-as debaixo de uma vírgula. O silêncio floresce
melhor em terreno abandonado.
Fagulha
Escrevo como quem treme. As mãos não procuram beleza. Procuram sobrevivência.
Inventário da ausência
Tenho uma bússola que aponta sempre para dentro. Cada verso que escrevo é uma
tentativa de desvio.
Ritual
Antes de escrever, acendo uma dúvida. É o meu incenso. A linguagem responde com
fumaça.
Confissão
Feri tantas palavras, tentando tocá-las. Hoje, apenas encosto o ouvido nelas.
Talvez um dia me contem o seu segredo.
Noite sem idioma
A escuridão não fala. Apenas observa. Caminho por dentro dela, como quem
aprende a silenciar a gramática dos medos.
Mapa rasgado
Abri o mundo e ele gritou. Tentei colá-lo com versos, mas cada linha era um
corte. Navego agora pelo avesso do papel.
Relatório de sombras
Há sombras que sabem mais de mim do que a luz. Seguem-me com paciência,
corrigem os meus passos. São elas que editam os rascunhos que chamo “eu”.
Epílogo
O mundo ainda existe. Talvez por causa daquele erro ortográfico que deixei
escapar.
As
palavras não pedem licença.
Caem.
Como cinzas sobre a pele nua do tempo.
Ficam.
Gravadas a ferro quente na carne branca da página.
Sem perdão. Sem
regresso.
Disseram-me:
“Não abras o livro que sangra.”
Mas eu abri.
Com dedos trémulos e olhos em febre.
E lá estavas tu
em cada linha que me queimava a memória.
O
escritor avisou:
“Não escrevas. A tua dor é demasiado bela.”
O alfarrabista gritou:
“Queima tudo, ou serás devorada pelas vozes!”
E eu obediente
rasguei cada verso que me tocava.
Mas a tinta ficou nas mãos.
E as mãos ficaram em mim.
A
folha vincada a quente.
A folha vincada a quente.
Repito
como
quem reza
como quem tenta apagar o nome do desejo.
Fui ter contigo como o sal vai à
ferida.
Como o silêncio invade o quarto depois do grito.
Como o mar engole o rio e nunca o devolve.