sábado, 6 de setembro de 2025

A sombra do vento na cortina da manhã

 



O vazio dança entre as paredes.

 

A luz a entrar

oblíqua

pela cortina rendada.

 

O ranger do soalho conta histórias
e o relógio murmura os minutos

com voz de avô.

 

O eco de passos que já não voltam
e o aroma quente que abraça os móveis

 

O café a fumegar

na chávena de porcelana gasta.

A memória da tua mão

a servir-me
e o teu riso

a morar no silêncio da casa.

 

O cheiro de domingo

[bolo de laranja e café forte]
a cozinha cheia de sol

e saudade.

 

A saudade.
Um bordado antigo

no encosto da cadeira.





BL

06.09.25





quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Regresso

 





Morri três vezes
antes de aprender o contorno da tua ausência.


Fui terra

fui pedra

fui silêncio.


E tu

com mãos de luz
vieste buscar-me.

 

No fundo do chão
onde o tempo não respira
a tua voz sibilava
como vento entre raízes.


E eu

cega de mim
vi o teu rosto
antes de abrir os olhos.

 

Deitaste-me no alto
onde o mundo se curva

para escutar.


As pedras da serra
guardaram o meu corpo
como quem guarda promessa.

 

Cantaste-me ao ouvido
com a voz que só os mortos reconhecem.


E eu

renascida
não temi perder-te outra vez.




BL

04.09.25





quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Apenas estão

 





Quando o sol me chama
numa manhã de inverno
as árvores

despidas

respondem primeiro


com os seus braços nus
erguidos em prece

ou em protesto.

 

Não há folhas a esconder segredos
nem sombras

a disfarçar o tempo.


Só o tronco

a pele rugosa
e o silêncio

a crescer entre os galhos.

 

Elas não pedem nada.


Apenas estão.
Como quem já aprendeu
que a beleza também mora
naquilo que se perdeu.

 

E eu

olho-as

assim
a sentir a força que existe no despojamento.


E sinto que talvez o sol me chame
não para me aquecer
mas para me lembrar
que existe vida

mesmo na espera.




BL

03.09.25





segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ajuda-me a ordenar este caos

 




Começo pelo telhado
porque é lá que o céu me toca.
Lanço as telhas ao vento
e elas pousam como pássaros
à espera do teu regresso.


Não sigo planos
não obedeço à gravidade das ideias.
Primeiro o que sinto
depois o que faço
e só então [talvez] o que penso.


As vigas vêm depois
como braços que aprendem a abraçar.
A base sobe devagar
como quem aprende a ser chão
depois de ter sido nuvem.


As leis do mundo não me servem.
As minhas estão por escrever
com tinta feita de instinto
e papel arrancado ao tempo.


Construo ao contrário
porque só assim posso ser inteira.
Começo pela casa que me protege
e acabo no rascunho que me revela.


Se vieres
traz contigo o silêncio e a coragem.
Ajuda-me a ordenar este caos
onde tudo está fora de lugar
mas tudo me faz sentido.






BL

01.09.25







sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Alquimia

 


 

Vamos moldar palavras

como quem molda o vento.

 

Como se o poema tivesse

escutado o teu silêncio

antes de nascer.




BL

29.08.25







Sabem

 





os que caminham à margem
não olham para trás
nem para dentro

carregam relógios quebrados
e promessas por cumprir

sabem que não têm todo o tempo
mas fingem que o silêncio não pesa

na pele
cicatrizes de escolhas
feitas à pressa

e no fundo dos olhos
aquele resto de luz
que ainda não se apagou




BL

29.08.25




quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Entre escombros

 





 

O chão é cinza
o céu um véu de ferro.


E

ainda assim
há raízes que se recusam
a morrer.

 

A esperança sussurra
pulsa
como um coração escondido
num corpo ferido.

 

Há caos
há vento que arranca portas
há noites que não acabam.


Mas há mãos
que seguram outras mãos
olhos que procuram o azul
quando tudo é escuridão.

 

E há quem plante
mesmo sem saber se virá a colheita.


Quem canta
sem plateia.
Quem escreve
sem saber se alguém lerá.

 

Porque a esperança
é esse gesto pequeno
que desafia o abismo.

 

É flor que nasce
no meio da pedra

no meio da ruína
onde o tempo se desfaz em poeira.





BL

28.08.25






Carta ao silêncio






Fiquei a olhar o lugar onde estavas
como quem espera que o vento traga o teu nome.
A luz atravessava os ramos da figueira
e fazia do teu rasto um brilho breve.

 

Os que partiram vieram sentar-se comigo
com os olhos cheios de histórias e gargalhadas antigas.
Trouxeram o cheiro do pão quente
e o rumor das tardes em que éramos muitos.

 

As mulheres que nos embalaram
ainda cantam baixinho no fundo da memória.
Os homens [imóveis] guardam o tempo
como quem guarda sementes no bolso.

 

No último dia em que te vi
a chuva caía como quem não quer molhar.
O campo estava meio seco meio lembrança.
Não fui até à janela.
Fiquei a escrever-te com os olhos fechados.


Guardo as folhas no fundo da gaveta
junto às coisas que não se dizem.
Se um dia as leres
é porque voltaste ao lugar onde o silêncio sabe bem.






BL

28.08.25










terça-feira, 26 de agosto de 2025

Comendo a dor

 






Rasgo o silêncio com dentes de vidro
mastigo memórias como carne crua.
O tempo escorre
viscoso
pelos cantos da boca
engole gritos
inaudíveis.

 

A dor tem sabor de ferrugem
e relâmpago
arde na língua como segredo maldito.
Mas eu como.
Como até os ossos da ausência
até os espinhos da culpa
até aquele nome
que nunca mais chamei.

 

No banquete da alma
sou fera e penitente
devoro o que me destrói
com a fome dos que não esquecem.

 

E no fim
quando tudo estiver digerido
restará apenas o vazio
cheio de mim.





BL

26.08.25





segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Se algum verso te morder por dentro

 





 

Se algum verso te morder por dentro

ou te acender uma luz inesperada

deixa que ele fique a marinar

dentro de ti

como um vinho encorpado

ou um silêncio bem guardado.

 

Porque há palavras

que não se dizem.

Elas escorrem

pelos olhos.





BL

25.08.25





Diário de bordo

 






Dia zero
A manhã escorre pelos ouvidos. Não há sol, só rumores. Escuto o tempo como quem lê um livro sem capa.

Coordenada perdida
As metáforas morreram ontem. Enterrei-as debaixo de uma vírgula. O silêncio floresce melhor em terreno abandonado.

Fagulha
Escrevo como quem treme. As mãos não procuram beleza. Procuram sobrevivência.

Inventário da ausência
Tenho uma bússola que aponta sempre para dentro. Cada verso que escrevo é uma tentativa de desvio.

Ritual
Antes de escrever, acendo uma dúvida. É o meu incenso. A linguagem responde com fumaça.

Confissão
Feri tantas palavras, tentando tocá-las. Hoje, apenas encosto o ouvido nelas. Talvez um dia me contem o seu segredo.

Noite sem idioma
A escuridão não fala. Apenas observa. Caminho por dentro dela, como quem aprende a silenciar a gramática dos medos.

Mapa rasgado
Abri o mundo e ele gritou. Tentei colá-lo com versos, mas cada linha era um corte. Navego agora pelo avesso do papel.

Relatório de sombras
Há sombras que sabem mais de mim do que a luz. Seguem-me com paciência, corrigem os meus passos. São elas que editam os rascunhos que chamo “eu”.

Epílogo
O mundo ainda existe. Talvez por causa daquele erro ortográfico que deixei escapar.






BL

25.08.25












sábado, 23 de agosto de 2025

As horas dormem com os olhos abertos


 





Esta noite

decidi nadar no céu.

 

 As nuvens eram feitas de vidro

e um peixe

com asas de papel

ensinou-me a respirar palavras.

 

A cidade flutuava

cheia de portas sem casas

e janelas que mostravam memórias

de quem nunca existiu.

 

No quarto

em espiral

as paredes conversavam baixinho

em dialeto de sombras

e o chão pedia-me para andar de costas.

 

Vi-me ao espelho.

Era uma árvore com corações pendurados

cada pulsação um poema esquecido

que o vento lia em voz alta.

 

E quando acordei

sob um teto de aurora boreal

soube que os sonhos só existem

para nos ensinarem

a acordar devagar.






BL

23.08.25






sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Pesam-me os olhos

 







As palavras não pedem licença.
Caem.
Como cinzas sobre a pele nua do tempo.
Ficam.
Gravadas a ferro quente na carne branca da página.
Sem perdão.
Sem regresso.

 

Disseram-me:
“Não abras o livro que sangra.”
Mas eu abri.
Com dedos trémulos e olhos em febre.
E lá estavas tu
em cada linha que me queimava a memória.

 

O escritor avisou:
“Não escrevas. A tua dor é demasiado bela.”
O alfarrabista gritou:
“Queima tudo, ou serás devorada pelas vozes!”


E eu
obediente
rasguei cada verso que me tocava.
Mas a tinta ficou nas mãos.
E as mãos ficaram em mim.

 

A folha vincada a quente.
A folha vincada a quente.
Repito

como quem reza
como quem tenta apagar o nome do desejo.

 

Fui ter contigo como o sal vai à ferida.
Como o silêncio invade o quarto depois do grito.
Como o mar engole o rio e nunca o devolve.

 

Agora
pesam-me os olhos.






BL

22.08.25







quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Quando o tempo é abrigo

 








O tempo é casa
com portas que rangem
e janelas que guardam
o cheiro dos dias.

 

Tem paredes gastas
onde encosto a memória
e um sótão
cheio de silêncios empilhados.

 

Há quartos
onde ainda mora a infância
e corredores
onde ecoam passos que já partiram.

 

O tempo é casa
e eu sou hóspede
de mim mesma.

 

Às vezes arrumo
as gavetas do passado
ou deixo o presente
a secar na varanda.

 

Mas nunca saio
sem deixar
a luz acesa.





BL

20.08.25






segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Há uma dança na margem

 


 








No centro
tudo se anula.
A medida implode
o grito ecoa.


Tu
disfarce do comum
escapas ao compasso das regras.

 

Eu?
Sou a excentricidade que resiste.
Afastada do meio
do conforto
do porto seguro.

 

Há uma dança na margem
um equilíbrio precário na beira da queda.


Mas é lá que me encontro.
Onde o tempo não passa por cima
mas atravessa o peito
como relâmpago.

 

Anda comigo.
Vamos correr sobre a lâmina do instante
onde cada passo é quase queda
e cada queda é quase voo.

 

Não olhes para trás.
O passado desfaz-se como névoa.
Correr é cair com intenção.
E o que nos salva é o passo seguinte.

 

Tu e eu
em queda contínua
sem tempo para medir
mas tempo suficiente para sentir.





BL

18.08.25