segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Quando a terra esquecer os nomes das raízes

 



Um dia
quando os espelhos deixarem de reconhecer os rostos
e os dias forem apenas ecos de passos antigos

hei de guardar um gesto intacto
para consolar os lugares onde nunca estivemos.


Então
talvez entenda os olhos que se fecham
antes de ver o mar

e os corpos que se deitam
como se esperassem por uma estação que não vem.


Há memórias que se desfazem sem dor
como a poeira nas asas de um inseto
ou o som que se perde
numa casa sem janelas.





BL

27.10.25







sábado, 25 de outubro de 2025

A sombra do candeeiro


 




Acendes o candeeiro da sala
mas a luz não chega
ao fundo dos teus olhos.


As fotografias tortas na estante
sorriem com dentes de papel.


E tu
finges que não ouves
o ranger da madeira
sempre que te sentas
no sofá da infância.

Lá fora
o portão enferrujado ainda geme
com o vento
como se chamasse por ti.


Mas tu não vais
não atravessas o jardim seco
nem pisas as folhas
que guardam os passos
que não deste.


Ficas
na penumbra do corredor
onde o tempo se dobra
como lençóis esquecidos.


E pensas que ninguém repara
pensas que és invisível
mas até o silêncio
te denuncia.


Essa casa que (não) habitas
já não te pertence
foi-se com os verões
em que corrias descalço.


Agora só restam
paredes que te olham
e um espelho
que já não devolve
o teu rosto.




BL

25.10.25








quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Corpo de palavra

 




Há um corpo que escreve 

sem saber o nome da página. 

Como quem toca o tempo 

sem querer acordá-lo.

 

Um olhar que toca sem invadir

um passo sobre a margem do silêncio

um ramo pousado sobre a pedra.

 

O gesto não pede. Oferece.

É a linguagem sem palavras.

O ritual que permanece.





BL

23.10.25







sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Pedi o sol ao outono

 




Hoje

pedi o sol ao outono

roubei ao céu a manhã

abri-a de par em par

soprei a cinza das nuvens

fui sorver a voz do mar.

Embriaguei-me de azuis

reevoquei lugares

fui grão de areia

gaivota proscrita

da solidão que me habita.

Adormeci as sombras

enganei os reflexos

fugi-me

revesti-me de luares.

Fiz-me vento

desfiz tempo

fui voo de pássaro

olhar de criança

inventei um mar de esperança

ainda que seja precário.

Hoje

é o meu aniversário.





BL

17.10.25







segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Entre a água e o verso

 

 



Como se desenha o sal
na margem dos teus olhos
se o mar já não reconhece
a geometria do abraço
nem o nome das conchas
que enterrámos no verão?

 

Há gestos que se perdem
como notas sem pauta
na pele que já não canta
e cartas que o tempo
dobrou em silêncio
no fundo da gaveta.

 

Se abríssemos o peito
à cartografia do esquecimento
e deixássemos


[ainda que com janelas fechadas
as vozes apagadas dos vizinhos
e os retratos sem moldura]


deixássemos
que o poema nos habitasse
como uma sombra leve
no bolso interior da memória

 

o tempo talvez não nos tocasse
com os dedos da pressa.


Só o mundo lá fora
continuaria a correr.





BL

13.10.25





domingo, 12 de outubro de 2025

Depois de ti, o silêncio

 





Quando partes
o silêncio veste-se de cinza


e as sombras
alongam-se
nos muros da memória.


Cada folha que cai
é uma lembrança tua
a dançar
antes de tocar o chão.

 

Não há ruído.
Só o eco do que foste
a deslizar
no espaço onde o desejo se calou.





BL
12.10.25




sábado, 11 de outubro de 2025

Ajustar a pele ao esquecimento

 


 



Caminhas [com os olhos cheios de sal]
e a pele marcada por relâmpagos antigos.
Trazes no bolso o último suspiro da figueira
e o nome [esquecido] de quem em ti floresceu.

 

Perdeste o lume das tardes lentas
[o som das gargalhadas entre as ameixas maduras
ainda ecoa nas pedras da eira]
e com ele o mapa da infância.

 

Não
não se apaga
mesmo que o tempo seja um animal sem rosto.


Não
não se enterram as raízes
do corpo que dançou com o vento
quando o amor era um gesto simples
e o medo apenas sombra de pássaro.

 

E ainda que um dia te deites
sobre o musgo que guarda os segredos da chuva
continuarás a escrever
com os dedos sujos de terra
as constelações que nunca aprendeste a nomear.

 

Tudo o mais é neblina
sobre um espelho partido
que o outono deixou à porta.





BL
11.10.25






quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Vestígios

 



Os corpos ausentes
têm voz. Falam
com o espaço que ocupavam
com o cheiro que deixaram
com o gesto que não aconteceu.

 

A ausência é uma linguagem
feita de vestígios
de ecos
de silêncios que se repetem
como versos sem rima.

 

E
quando escuto
não ouço o que foi dito.
Ouço o que faltou.





BL
08.10.25













Ladainha da Alma em Fôlego Curto





Santa sombra que me segue,
Roga por mim.
São suspiros que não chegam,
Rogai por mim.
Anjo da dúvida,
Que me visita sem nome,
Roga por mim.

Estrela que se apaga antes do dia,
Rogai por mim.
Chama que arde sem lume,
Roga por mim.
Silêncio que grita no fundo,
Rogai por mim.

Paz que não se deita comigo,
Roga por mim.
Caminho que se dobra sem fim,
Rogai por mim.
Voz que não se ouve mas vibra,
Roga por mim.

Coração que se fecha por medo,
Rogai por mim.
Olhar que procura sem ver,
Roga por mim.
Tempo que não cura,
Rogai por mim.

E se não houver santo que me escute,
Que me valha o vento,
Que me valha o poema,
Que me valha o gesto,
Que me valha o nome que ainda não sei.

Amém,
Ou qualquer palavra que sirva
Para continuar.






BL

08.10.25






terça-feira, 7 de outubro de 2025

As mãos do tempo

 



 

De manhã
não chamo pelo sol.
Os dias chegam mudos
sem rosto
sem cerimónia.

 

Não persigo
[como pardais famintos]
o som das promessas
caídas e esquecidas no parapeito.

 

Caminho pelas horas
banais
arrastando nos bolsos
derrotas dobradas como papéis velhos.

 

Envelheço no gesto.
As mãos conhecem
o peso lento
das escolhas.

 




BL

07.10.25











domingo, 5 de outubro de 2025

Excesso

 




Há dias em que o corpo
não cabe em si.
Estica-se
dobra-se
mas continua a sobrar.

A pele guarda
o que não foi nomeado
como se cada poro
fosse uma sílaba retida.

 

O toque pesa.
O gesto falha.
O corpo quer ser abrigo
mas é ruína.

 

Aprendi a respirar
como quem tenta conter
um mar dentro de um copo.

 

Há memórias que se alojam
nos ossos
há saudade que se esconde
na curvatura dos ombros.


E por fim
quando tudo se reduz a um tremor
sei que o corpo não é limite.


É excesso.
Excesso de desejo
de dor
do invisível que molda o que somos.





BL

05.10.25









A minha rua






O meu passo por cima da sombra.

 

O silêncio dos vizinhos
esse modo esquecido
de se esconderem atrás das cortinas.

 

A minha rua
a espera por cima da sombra.

 

A voz urgente
ou o eco dos passos
esse eco sem destino
que vai do cansaço da pedra ao cansaço do corpo.

 

A minha rua
o meu passo por cima do tempo


por cima do tempo
os fios da chuva...

 

A espera por cima da sombra
esta ausência e este ruído.


Procuro lume para o meu regresso.

 

O meu passo por cima da sombra
esta sombra gasta
que se arrasta pela memória.




BL

05.10.25







 

sábado, 4 de outubro de 2025

Embaciado

 


 


O espelho não devolve nada.
A pele é uma superfície neutra
onde os dias se encostam
sem deixarem marca.

 

Falo comigo
como quem escreve num vidro embaciado.
A frase desaparece
antes de ser lida.

 

Há um cansaço que não se nomeia
mas que pesa nos ossos
como se o tempo fosse um líquido
sem recipiente.

 

E ainda assim
continuo a vestir-me
como quem espera visitas.





BL

04.10.25












A arte de cair

 




Caí tantas vezes
que aprendi a subir.


O chão é apenas
um lugar de passagem
um ensaio para o voo.


A queda é uma forma de ascensão
quando se cai para dentro
quando se toca o fundo
e se encontra o céu.


Não há erro no salto.
Há movimento.

 

E
no desequilíbrio
há um portal que só os caídos veem.





BL
04.10.25







sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Substantivo

 





Estás aqui
mesmo quando não estás.


A tua ausência tem forma
tem peso
tem sombra.

 

És o paradoxo que me habita:
não és
mas és.
Não estás
mas ocupas.

 

E nesse espaço invisível
existe um mundo inteiro
feito de ti.





BL

03.10.25







Os vãos da memória

 



Tudo o que não se conclui
permanece.


Como o gesto que não se deu
como o voo que falhou
mas deixou rasto de vento.

 

Os vãos da memória
são espaços habitados
por tudo o que não coube no tempo
por tudo o que não se disse
mas se escreveu no corpo.

 

E tu
que escutas o silêncio
sabes:
há beleza no que não se resolve
no que se cala
há linguagem
há presença no que se ausenta.

 

Este é o lugar.


Aqui

entre o sal e a sombra
entre o voo e a queda
entre o louco e o lúcido
a poesia respira

como quem vive entre mundos.





BL

03.10.25