segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ajuda-me a ordenar este caos

 




Começo pelo telhado
porque é lá que o céu me toca.
Lanço as telhas ao vento
e elas pousam como pássaros
à espera do teu regresso.


Não sigo planos
não obedeço à gravidade das ideias.
Primeiro o que sinto
depois o que faço
e só então [talvez] o que penso.


As vigas vêm depois
como braços que aprendem a abraçar.
A base sobe devagar
como quem aprende a ser chão
depois de ter sido nuvem.


As leis do mundo não me servem.
As minhas estão por escrever
com tinta feita de instinto
e papel arrancado ao tempo.


Construo ao contrário
porque só assim posso ser inteira.
Começo pela casa que me protege
e acabo no rascunho que me revela.


Se vieres
traz contigo o silêncio e a coragem.
Ajuda-me a ordenar este caos
onde tudo está fora de lugar
mas tudo me faz sentido.






BL

01.09.25







sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Alquimia

 


 

Vamos moldar palavras

como quem molda o vento.

 

Como se o poema tivesse

escutado o teu silêncio

antes de nascer.




BL

29.08.25







Sabem

 





os que caminham à margem
não olham para trás
nem para dentro

carregam relógios quebrados
e promessas por cumprir

sabem que não têm todo o tempo
mas fingem que o silêncio não pesa

na pele
cicatrizes de escolhas
feitas à pressa

e no fundo dos olhos
aquele resto de luz
que ainda não se apagou




BL

29.08.25




quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Entre escombros

 





 

O chão é cinza
o céu um véu de ferro.


E

ainda assim
há raízes que se recusam
a morrer.

 

A esperança sussurra
pulsa
como um coração escondido
num corpo ferido.

 

Há caos
há vento que arranca portas
há noites que não acabam.


Mas há mãos
que seguram outras mãos
olhos que procuram o azul
quando tudo é escuridão.

 

E há quem plante
mesmo sem saber se virá a colheita.


Quem canta
sem plateia.
Quem escreve
sem saber se alguém lerá.

 

Porque a esperança
é esse gesto pequeno
que desafia o abismo.

 

É flor que nasce
no meio da pedra

no meio da ruína
onde o tempo se desfaz em poeira.





BL

28.08.25






Carta ao silêncio






Fiquei a olhar o lugar onde estavas
como quem espera que o vento traga o teu nome.
A luz atravessava os ramos da figueira
e fazia do teu rasto um brilho breve.

 

Os que partiram vieram sentar-se comigo
com os olhos cheios de histórias e gargalhadas antigas.
Trouxeram o cheiro do pão quente
e o rumor das tardes em que éramos muitos.

 

As mulheres que nos embalaram
ainda cantam baixinho no fundo da memória.
Os homens [imóveis] guardam o tempo
como quem guarda sementes no bolso.

 

No último dia em que te vi
a chuva caía como quem não quer molhar.
O campo estava meio seco meio lembrança.
Não fui até à janela.
Fiquei a escrever-te com os olhos fechados.


Guardo as folhas no fundo da gaveta
junto às coisas que não se dizem.
Se um dia as leres
é porque voltaste ao lugar onde o silêncio sabe bem.






BL

28.08.25










terça-feira, 26 de agosto de 2025

Comendo a dor

 






Rasgo o silêncio com dentes de vidro
mastigo memórias como carne crua.
O tempo escorre
viscoso
pelos cantos da boca
engole gritos
inaudíveis.

 

A dor tem sabor de ferrugem
e relâmpago
arde na língua como segredo maldito.
Mas eu como.
Como até os ossos da ausência
até os espinhos da culpa
até aquele nome
que nunca mais chamei.

 

No banquete da alma
sou fera e penitente
devoro o que me destrói
com a fome dos que não esquecem.

 

E no fim
quando tudo estiver digerido
restará apenas o vazio
cheio de mim.





BL

26.08.25





segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Se algum verso te morder por dentro

 





 

Se algum verso te morder por dentro

ou te acender uma luz inesperada

deixa que ele fique a marinar

dentro de ti

como um vinho encorpado

ou um silêncio bem guardado.

 

Porque há palavras

que não se dizem.

Elas escorrem

pelos olhos.





BL

25.08.25