domingo, 20 de novembro de 2022

Ébrios de mar

 




Cantam os rios
ébrios de mar.

Hão de marear
_ digo-lhes eu _

Hão de flutuar
os rios. Erguer-se do silêncio
e partir
no círculo mais alargado
da vertigem.

Hão de olhar para trás
os rios
os dedos hesitantes estendidos para dentro
dos nomes
amarrados às margens.

Olhares que o coração não detém.

Hão de cair
desgovernados
os rios. Como folhas de outono
que sempre se anunciarão banhadas de amanhãs
diante da primavera.

Chegam e partem
as estações

e os rios
perdidos de ébrios
em busca do vento novo que lhes circula
nas palmas das mãos.

Vão marear
os rios.

Hão de voltar
_ digo-te eu _

ébrios de espanto e de encanto e de memórias.



BL

2014







quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Fluindo

 



Fluindo

fruindo


água nítida

inocente

sempre

sempre


e a vida 

vai

por dentro


cristal

da manhã


rasto azul de

aquário

transparente


amor presente 

sempre.




BL

10.11.22









terça-feira, 20 de setembro de 2022

Por esses dias






Chegaste tu

e deste-me a palavra.

Não era para ser assim

porque eu ainda não sabia articular

os meses da primavera. Quando

aprendi a juntar as letras da

primeira palavra

já era demasiado tarde porque

entretanto

caía uma desgastante tempestade

de granizo

que reduziu a cinzas

todas as letras que

por esses dias

já me tinham sido confiscadas.


BL

20.09.22




 

No silêncio que me digo






Digo-me do silêncio das árvores 

de um céu pintado de frutos e de cores que não chegaram

a amanhecer


de navios carregados de monólogos surdos

cúmplices dos sonhos 

e das esperanças

que em cinzas caíram a meus pés

sussurrando vozes perdidas no cais


de esboços e representações

memórias de súplicas

e de soluços

irónicas sedas nos meus areais.


E no silêncio que me digo entendo

a interdita agonia das pétalas

e dos corais


a indefinível distância dos recantos

onde nasci onde morri

e hoje sou

um tudo nada

dentro de mim.




BL

20.12.2010










domingo, 18 de setembro de 2022

(Re)nascer em ti





 Encontrei-te e

no fogo de ti

fecundei a vida

e em mim renasci.


Em ti

escrevi o poema,

reconstruí os caminhos,

alicercei a casa.


Abraça o meu sorriso,

mima-o,

ama-nos

no azul do teu olhar,

na lonjura do teu leito.


Canta-me

as melodias de luz

do teu horizonte

sonhado na infinitude

de um tempo suspenso.


BL











segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Viajar entre versos







 Passo

e vou deixando

ecos de mim em todos os espelhos.

Ficam olhares presos nos tempos,

a pele colada a relógios 

que perdem a noção do espaço

e do movimento certo

e começam a rodar no sentido inverso.

Desvendo-me toda,

célula por célula,

entrego a minha essência a quem quiser lê-la.

Sabendo quem sou

e para onde vou,

suspendo-me em versos em que lavo a alma,

em busca do êxtase,

ou tão simplesmente, de uma doce calma.


Regresso,

quase sempre entre sentires desencontrados,

etérea, mendiga,

sedenta, isso sim, de uma mão amiga

dispersa,

esbatida em reflexos desfocados.



BL








quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Poalhas difusas

 




As sombras do teto a passarem

num dia de madeira.


Sinto-as

na frieza de uma língua impronunciável

aquelas poalhas

difusas e determinadas.


Riem

as cobardes

fazem a festa do fogo porque

todo o corpo me dói


e atiro um poema

contra a parede.


Fogem pirilampos

assustados

e eu penumbra confusa

e eu em queda

a tropeçar

na solidão.


Condenam-me

confinam-me

sabem que somente conseguem

enfrentar-me

quando me trancam

sem ar

para respirar.


Não sabem

as cobardes

que

das palavras

não me podem isolar.





BL

 27.08.22






terça-feira, 30 de agosto de 2022

Desnorte

 

Nem tanto uma noite de encanto

e de espanto.

Há gestos feridos

evitáveis

que rasgam os movimentos e espalham os ventos.

Ressoa ainda uma aparência mordaz

a simulação

incapaz de outra rota possível.

Há a mutilação da palavra

ruídos de sentidos

que as aspas não abrem nem fecham.

A bússola desfeita no ar

sem rumo

e a chuva incendeia conversas

sobre telhados de vidro.

Sinais de dor

maior e menor

vibram ocultos

desnorte

em delírios de morte

antecipada.



BL







quarta-feira, 17 de agosto de 2022

A claridade do tempo

 



Vem, enterra as palavras na terra

deita-te no silêncio das pedras do rio.

O pôr-do-sol é quase um lugar

dentro do mar.


Ouçamos a luz do dia, caminhemos juntos

entre as sombras da montanha.

Eu afastarei as escarpas, os ramos quebrados,

a escuridão do vale.


Apaga a noite por dentro.


Ao nosso lado os sonhos sorriem

seguem, seguros, o mapa dos relógios

a linha verde do luar.


Que venham as neblinas de outono

e os gemidos do vento.


A claridade do tempo

ensina-nos a respirar.


BL

03.01.11










terça-feira, 16 de agosto de 2022

A voz do tempo

 



Um incêndio ancorado

inclinado a qualquer instante

de reativação.


Avança sobre a

relva fresca

sem limites da memória

na imensidão do céu.


Atravessa o tempo

rejuvenesce

em existências sobrepostas

em idades que pertencem a lugares

onde existiu

e se entendeu.


Alimenta-se da melodia do melro

e engole as raízes mais profundas

da voz

no toque silenciado da pele.


15.08.22


BL













domingo, 14 de agosto de 2022

Desvios

 



As vozes dissolviam o nevoeiro

porque saboreavam os significados

das palavras gravadas na

parede branca.


No interior da luz

rostos atravessados de memórias

dedilhavam murmúrios de ventos


ou afetos fechados entre muros de inocência.


A tarde era um início

e o final um caminho invisível

à distância do alfabeto das horas.



BL

14.08.22




sábado, 6 de agosto de 2022

De um tempo de aves

 




Há um livro pousado sobre a mesa

e uma voz que lhe chega de um tempo de aves

ateadas de luz.


Pedra solitária

desenha num gesto

um caminho de mar. E a penumbra


consente-lhe um sorriso de pétala

em que recolhe

o desvario de asas prometidas


num diálogo de sílabas proibidas.


Assim pensou

_ proibidas _

como um rasto de cinzas e de sombras

onde nada mais existe que o negrume dos reflexos

a morrerem de sede.


BL

05.08.22











sexta-feira, 29 de julho de 2022

Ecos

 





A vida cortada ao meio

o negro e o vermelho

e tu

sonho de permeio.


Ilha de fogo

instante de ventos, folhas, águas

de claridade.


O tempo que foi

e tu a ficares

memória de todas as cores.


A vida cortada ao meio

e tu

crença do que resta dos aromas

da inocência.


Os olhos da verdade

à distancia do adeus na frieza

crua dos vocábulos.


Sobram os ecos

do não inteligível

o poema que regressa ao coração da noite.


Sobra a matemática das horas

no ritmo prosaico dos dias.


BL

01.12.21









sábado, 11 de junho de 2022

Poema interrompido




Subíamos a avenida

imensidão de luz coada

pelos fascínios que o outono trazia.

E dentro das mãos

levávamos melodias.


Em redor

o silêncio

a ilusão da paisagem deserta.


Atravessámos a invernia

a chuva abundante

horas somadas de relâmpagos


e a linguagem dos teus olhos

que

por dentro

eu vivia.


Mas abril descia

a luz imensa descia

e desciam as melodias

águas mil

instantes de ventos


e ecos a sobrarem da vida que caía

dos aromas da inocência.


O tempo a ir

dias atrás de outros dias


e tu a ficares memória

poema interrompido


instantes de ventos

águas mil


a regressarem ao coração do silêncio.




BL

10.06.22










 

domingo, 8 de maio de 2022

Existe no meu voo um instante inconfesso


 





Existe no meu voo um instante inconfesso.

Morde o vento

arranha as águas adormecidas

de um mar que existe dentro de mim. Esta dor

extensa

[não extinta]

ou o acorde de piano que me leva a

atravessar o mundo. Placidamente.


Às vezes

os meus olhos são esse instante.


Como fogo

ou como chuva


como o fundo da memória

onde o silêncio se cala

e acorda as vozes que estão vivas

que vão e vêm do meu tempo de menina.


Os meus olhos a vibrarem

o ar quente a tocar o meu corpo

e a passar por cima do mundo. A transportar

aquilo que é importante.


O ar parado

o tempo quieto

e eu a ouvir a tua voz a dizer os nomes

das coisas importantes.


A tua voz a ser meu lugar.




BL

08.05.22



terça-feira, 26 de abril de 2022

Nestas pedras pode estar um poema

 



Daquela janela,

que raramente eu escolhia,

eu via e ouvia

a cascata de pedras,

por onde se estendia

a luz colorida das margaridas-do-cabo.


E, naquele instante,

não mais eu queria

além de um tempo parado,

já agora, também, um espaço iluminado,


para que eu, já de mim sombria,

pudesse festejar a ausência de sombra

que, de noite e de dia,

teimosa me segue

para todo o lado.




BL

26.04.22








quinta-feira, 14 de abril de 2022

Secam-lhe as árvores

 


Estremece à incerteza das águas

no soluço dos poentes.

Pouco sabe dos segredos de cada hora

ou da geografia irrecuperável do derradeiro sol.

Asas voláteis navegam-lhe as veias

e na brevidade dos dias escorre uma lava

acesa de palavras.

Vozes e cinzas permanecem inteiras

ainda que sejam efémeras

as sementes que lhe vivem no olhar.

Secam-lhe as árvores

no voo transitório das brisas

de uma janela de mar.

Acostada ao tempo

é um vulto

um silêncio retraído

a febre que dói

na soleira do precipício em que em sede se afoga.



BL

14.04.22








sexta-feira, 8 de abril de 2022

Persistência

 

No vento inquieto da tarde

verbos de aves conjugadas

tuas e minhas

riscam sulcos

atam laços

o teu nome

formas de asa

prendem e arrastam


estão em mim

ferro em brasa

delicadas

as palavras.


BL

06.04.22







segunda-feira, 4 de abril de 2022

Manhãs [ des ] iguais

 


Os passos apressados dos passantes

os despachos urgentes

ou assuntos pendentes

dos tão-importantes.


E aí

dei por mim

sozinha


a varanda era a minha


as mãos apoiadas no corrimão

da manhã aceitando

a respiração.


E

naquele momento

de sol e de vento

senti


no meu espanto


que o tão pouco era tanto

para a minha canção.


BL

03.04.22



segunda-feira, 14 de março de 2022

O silêncio é vertigem



 Uivos de fogo derramam relâmpagos

sobre o rio amarrado às margens.

Os instantes de luz ferem os ponteiros da cidade

engolida no espanto da sombra.

Dói o rosto da noite

a estremecer desde o ventre da terra.

O silêncio é vertigem

onde a morte sem nome se acomoda.

Nas palavras confundem-se abrigos

e tumultos de viagens derradeiras.

A casa

o caos.

Mapas de limbos na permanência dos dias

ou voos extasiados no orvalho dos olhos.


BL

14.03.22








sexta-feira, 4 de março de 2022

Vocábulos indizíveis

 

Na pele

os escombros das manhãs

uma esperança fugaz ou os desvios de alguma outra

tecida na turbulência do peito.


Reaprende-se o colo em que se acorda

dos ardis profundos da noite.


Na verdade dos olhares

os vocábulos indizíveis

a dor desnuda da recordação dos pássaros.


Um fumo denso apaga sinais de sorte

e o mundo revela-se letal e desabitado.


Verte-se o sangue de um futuro adiado

e guarda-se em sementes de nevoeiro um simulacro de sol.


BL

03.03.22








quarta-feira, 2 de março de 2022

Parede de sangue

 

A inocência perdida numa parede de sangue.

A alma a respirar a noite profunda

no esforço de combater a morte.

O olhar

líquido

parado lá atrás

na contemplação do amor aberto aos gemidos da terra.

Pássaros perdidos

a procurarem entender o que está

para além da sua ausência.

Nas mãos

o silêncio.

O silêncio iluminado de um coração de pretéritos

ou o silêncio náufrago do inverno incisivo do futuro.


Tantos olhos

para onde nenhum barco regressa.


BL

01.03.22








domingo, 13 de fevereiro de 2022

A des.configuração das sombras

 



Nem sempre sabemos se o que nos inquieta

é a ausência do sonho


a solidão dos passos

ou o silêncio que cai sobre a pele


e a queima

sem que a manhã nos acorde.


Agarramo-nos às palavras

e ousamos tocar o tempo para sentir


no silêncio

[ redentor ]

a cumplicidade de uma voz


ou para antever

na luz

a des.configuração das sombras.


Para que seja nomeado

o corpo interrompido da verdade.


BL







domingo, 16 de janeiro de 2022

As horas

 


As horas

na minha rua rodam

lentas

seguem as sombras que seguem as

árvores.


Olho as árvores e o vento

tanto tempo

e nas minhas veias correm folhas e

sombras

lentas


a procurarem refúgio

dentro da terra


raízes de horas que me ensombram.


BL

10.01.22