terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Ensina-me um mar...


 


Se um dia me vires caída
sob a minha sombra
pergunta à vida
onde escondeu as pedras polidas
que não me deu. Nelas me deitei
regato e em manhãs
de pássaros voei um tempo
que nunca foi meu.

Rasguei no vento passos doridos
e às vezes dói-me
o frio dos rios
em poeiras da alma que o silêncio soprou.

Se um dia me vires caída
sob a minha sombra
acende luas no meu olhar
e nos teus olhos de água
ensina-me a vastidão de um mar
em que das pedras me perca
sem que me perca de mim.

BL

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Paradoxos

 





Um inverno a atravessar o texto. Parágrafos vazios
ausência de vogais
a gritar silêncios.

A pele sedenta de espaços de neve branca ou de
papoilas quentes
a redimensionarem a vida.
E deuses pacientes
o coração tranquilo
na marginalidade do verso.

Tudo se reduz ao ruído de vendavais
à sinuosa curva sublinhada pela
dualidade dos caminhos.

BL

sábado, 28 de novembro de 2020

Já não existem janelas

 


A minha rua chove de solidão.

Os rostos partiram

lívidos

e levaram com eles os portões abertos e

os risos das crianças heróis

da fórmula um

em carrinhos de madeira construídos

nos quintais.

Nos muros da minha rua sobe o abandono e

entranham-se odores de podridão.

Já não existem janelas e

neste silêncio vazio de lágrimas

eu já não sei as horas

e fujo

fujo

sem caminhar.


BL – 28.11.20





sábado, 21 de novembro de 2020

Ao fundo, uma parede em branco


 

Penteavas-me a trança

e metade de mim a ser

a parede em branco

ao fundo dos meus passos vagarosos.



Caminhava para trás

os braços despidos de folhas



estendidos para dentro

dos teus olhos a dizerem vai



que é frágil

e débil

a luz que sobra.



E eu a atravessar a rua antiga

e eu a ser

correndo

a outra metade de mim.



BL

sábado, 14 de novembro de 2020

Pássaro de todas as estações

Foto de J. Luz

 


 

O som do desterro cala-me

a voz


e o silêncio entranhado

nos versos

afia as arestas do pensamento

disperso entre veias de

ventos e de inglória bonança.


As palavras pararam porque

o tempo sucumbiu

no pretérito imperfeito das memórias


e nas praças ateiam-se incêndios

a clamarem a ilusória mutabilidade dos corpos.


Selaram as portas

e os rostos explodem desamores.


Longe

muito longe

transporta novembro o meu olhar de outrora

pássaro de todas as estações.


BL


domingo, 13 de setembro de 2020

Saudade


 

Caminho repartida

por entre longes e metamorfoses do tempo. Envelhecendo

pólen e certezas

ecos das brisas que me sobram

de uma janela que cresceu

voltada para sul.


Desenho nas paredes

os rostos e os fascínios

por onde passa o coração da casa


ou talvez apenas

os sinais prometidos

do gesto circular dos regressos.


No calendário das solidões

o voo migrante das primeiras folhas.


Sigilosamente interrogo o verde breve de setembro.


Raízes de ausências

lugares de ruas desabitadas


retornam vazias

as minhas mãos.



BL

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Na lucidez dos ciclos





Podemos romper paredes
trazer para dentro de casa
um rosto pele de musgo
sob a folhagem de um tempo ambíguo.

Esfregamos as pálpebras
a diluir nas nuvens
o que, na lucidez dos ciclos, poderia ter sido.

Não sei se nas paredes
se desdobram os ecos
ou ponteiros de relógios invisíveis.

As árvores dançam ao fundo da noite
e nem o doce brilho de dezembro
confunde a solidão que as habita.

BL

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Na breve floração dos olhos






Caminho por ruas incertas
dúvidas esparsas
quando na voz dorida dos rios
vejo aproximar-se
a cadente aceitação dos naufrágios.


Fragmento o tempo entre palavras
inábeis
e com elas desenho a diáspora das lágrimas
que me cabem.


Teimosamente espero as primeiras espigas
que pelas íntimas estações hão de chegar


[ na breve floração dos olhos
ou no voo transitório de uma ilusão ]


e em troca me pedem
a indizível harmonia de um silêncio.



BL





quarta-feira, 29 de julho de 2020

De neve e silêncio





Caminhavas para a luz indefinível
quando o arvoredo já era de neve e silêncio.
Ressoavam os gestos inúteis
e irreparáveis
e a chuva no teu rosto dizia todas
as palavras e todas as lembranças que tinhas
deixado desamparadas atrás de nós.


BL
29.07.20

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Os rostos da espera





A luz não jorra
sobre os rostos da espera.
Verte-se em desequilíbrio para

estátuas suplicantes de movimentos nítidos
em espelhos de vozes alegres
e claras.

Que entrassem a cor e a água
e a solidão se dissipasse
nos corpos angulares e taciturnos.


BL – 10.07.20

terça-feira, 7 de julho de 2020

Dentro dos meus olhos, o teu reflexo


Hei de encontrar-te um dia
como se tivesse fugido o tempo
e dentro dos meus olhos o teu reflexo
e um mundo de mil luas
na plenitude em que, não te encontrando,
te invento.

E nesse dia
os pássaros acender-nos-ão o sol
e um chão de hortelã será a madrugada,
a tua,
e ao pôr-do-sol dos barcos
escreverei naquela nuvem duas lágrimas,
as minhas,
e nelas guardarei a folha em branco
do meu crepúsculo.


BL


sexta-feira, 3 de julho de 2020

O teu mar



Amanheces instante.
Acorde de piano em ampla harmonia
com rastos de navios
sem horas de chuva às portas da noite.

Constróis pontes coloridas e atravessas o mundo.
O teu mundo
aquela dor extensa a resistir dentro de ti.
O teu mar
que parte e regressa a cumprir o ciclo
de forma plena
parte integrante do teu lugar a cada anoitecer.

O teu lugar.
Palavra lenta e transparente
cântico de embalar onde o coração repousa
e a movimentação da luz acontece.

BL - 03.07.20



Yucca

BL

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Teias de palavras sem-abrigo




Nunca as horas foram tão breves
nunca os dias se fecharam tão cedo
contornos da noite
chuva baça
sem regresso.

As linhas do tempo sustidas
pelo desalinhamento dos ciclos
e as cores que incendeiam a tela
destroços de rostos
ao longo do silêncio do verso.

As mãos erguem as memórias
retêm o rumor do tempo. Prolongo-me
pelas copas das árvores
sopro apagado das pedras
e de aves caídas
arremesso.

Nunca os dias foram tão breves
e as horas compassos distorcidos
teias de palavras sem-abrigo
retrocesso.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Meu amor





Apesar de tudo


meu amor

cresce luz

em nuvens de inocência



pétala vagarosa

alva neve



e deixa que o vento te leve


leve.





BL - 26.06.20

De costas voltadas para a janela




Estou sentada num dia a morrer vazio.
O canto recostado na inclinação
do silêncio
e o vento
inquieto
baralha-me o pensamento arrastado e
sem certezas.

Não sei se faz sentido recolher palavras espalhadas
ao acaso
e alinhá-las de novo de um modo embaciado

enquanto as mãos correm para
lugares de melancolia
às vezes crateras abertas por um sopro gelado de nomes irreconhecíveis

pela escuridão.

BL
25.06.20

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Ilusória é a sílaba que flutua

Fechamos os olhos e
entregamo-nos à transformação da palavra
alquimia
luz imensa de substância pura.

Escutamos a sabedoria do mundo
somos corpo na justeza do gesto
ou então imagens dispersas
promontórios que atravessam a noite
escura.

Percursos às vezes partilhados
na imensidão das horas
na penumbra já tardia.

Ilusória é a sílaba que flutua
abstrata sensação de abismo
sem verbo e sem forma exposta à fluidez
do (en)canto.

BL - 17.06.20

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A tarde deixa-se tingir de poesia


A rua respira um tempo comum e solitário
a tarde deixa-se tingir de poesia
nas mãos a claridade na urgência de um afago
melancólica neblina
e indistinta.

Rede de memórias
dentro do vento que persiste
e rumores que se dispersam
no eco transversal do teu nome.

Acendem-se rostos em ardências encontradas
e por entre os espaços do que fomos
chegam-me as vozes de um alfabeto imaturo
no coração quente de palavras felizes.

Breves e mortais
[as vozes]
ondular de águas sustentadas por
distâncias impalpáveis e inexatas
a estenderem o movimento das mãos
no interior de um tempo que abraçamos
como prodígio.

BL – 12.06.20

sábado, 6 de junho de 2020

Tempo solar


Murcham os cravos
frágeis
a celebrarem a ironia do verão.
A buganvília não floriu
talvez a fome entranhada na extremidade da raiz.

Alongam-se as horas
agudas.
Alimentam a insónia
quando as
sombras se pronunciam mais densas.

Vagueiam pela casa
ardem
e gritam
enquanto recuperam memórias a preto e branco.

Um dia terei encontrado paredes de silêncio
onde a minha voz encostará a febre das palavras
uma árvore de raízes que
não morrem. A minha lucidez
ou o choro do poema.



BL - 05.06.20

Grande plano





O caminho é para onde o silêncio se veste de lavado
ou os dias reaprendem a viver
em plena primavera.
Abotoa-se a pele e evita-se a dormência
das janelas batidas pelo entardecer.
Saltam-se precipícios
ou corações magoados que nos
atravessaram parte do tempo.

E continua-se a ser futuro.

BL - 22.05.20