sábado, 12 de julho de 2025

Van Gogh mordeu-me

 





Dançam os girassóis na boca do lume
pinto com dedos de sombra
os traços impronunciáveis.


São memórias em carne viva
folhas abertas sobre o peito
onde o tempo repousa e sangra.


Dizem que o amor é só miragem
mas eu vi estrelas acesas
nos olhos de quem ficou


e em cada pétala tremem
as promessas que a noite engole
quando o desejo se curva à ausência.


Componho altares de silêncio
e entre cada beijo por inventar
a chama soletra o teu nome.


Van Gogh sorri do fundo da tela.


É preciso ser flor para entender
aquilo que a luz guarda no seu grito.




BL

12.07.25





sexta-feira, 11 de julho de 2025

Fragmento em contraluz

 







Rasguei a ausência

com dedos lentos

como quem se despe do tempo.


Aprendi a pele

na fricção suave dos dias


mesmo os dias que sangravam.



Aquele verão tinha margens de sal

e procurávamos terra

em bocas de fruta

sem polpa

sem perdão.



Tu eras voo

entre raízes.


Eu

um mapa sem norte
a tropeçar em sombras verdes.



Hoje

somos silêncio em trânsito.


O teu olhar

promessa aérea


o meu corpo

véu em combustão.



Neste lado da memória
o sol pisca palavras quebradas.


E a borboleta

imóvel

e sábia


murmura nomes esquecidos
sem idade

e sem língua.



No outro lado do tempo
a tarde escorre


como rio que não sabe
onde começa o mar.






BL

11.07.25








sexta-feira, 4 de julho de 2025

Ritual de permanência

 





Escrever é abrir sulcos

em pedra adormecida



tornar gesto a memória do toque.

Como quem ateia brasas no ventre do escuro.



Num qualquer lugar sem mapas

onde o abismo tem paredes de silêncio



encosta-se o olhar à vertigem

e o corpo habita a lentidão

daquilo que se mantém ausente.



Entre ruínas invisíveis

ergue-se um altar de ecos. Vozes submersas

vibram

na ossatura do tempo.



Nomeia-se o infinito

na espessura da sílaba.



Permanece-se.







BL

04.07.25






quinta-feira, 3 de julho de 2025

Sem destinatário





 

É neste quase-nada

que o corpo reaprende o peso da sombra

o frio da espera

a vertigem de escrever

sem destinatário.



Memórias estilhaçam-se

num tempo interior

que pulsa no silêncio.



Reza-se uma oração

sem fé



apenas para não esquecer a voz.



A espreitar um universo suspenso

entre o instante

e o infinito.



Escavam-se camadas

de uma luz imóvel



num ritual

de existir

entre escombros.





BL

03.07.25







terça-feira, 1 de julho de 2025

Mais de água do que de pedra

 






Um refúgio

à margem

do silêncio.

Mais de água

do que de pedra.

Que molde

dissolva

transporte.

Talvez uma busca

pelo coração secreto

da casa primordial.

Um rio fluido

que não escape entre os dedos.

Beleza líquida

feita de vento e memória

neste lado do tempo.

Um reencontro de palavras

pele

e sal

como quem guarda um frasco de mar

à espera da próxima onda.





BL

01.07.25







Auscultação da ausência

 




havia uma brisa

suspensa no limiar da espuma.

e um eco

circular

a transportar o voo dos pássaros.



um murmúrio.

tão vago.



e a ausência



liquefeita



entre a curva

do teu silêncio.



o tempo gotejava

das minhas mãos quietas

musgos acesos de sombra.




BL

01.07.25

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arquivos líquidos do corpo

 






Os dedos passam pela pele da água

e esquecem que são corpo.

Escuto.

É a infância

a sede

os nomes de quem partiu

sem dizer adeus.



Há vozes que só a água entende.



Pulsam

na vibração dos gestos que permanecem

transfigurados.



Tenho rios por dentro

estações que não chegaram a acontecer

e um mar antigo

que se move

quando fecho os olhos.



Há vozes que só a água guarda.



O sal sabe histórias do meu nome

antes de mim.



Cada lágrima é um mapa.



O corpo lê-se em camadas de sal.

As quedas

os toques

as ausências que molharam os ossos.



Há palavras que não sabem ser ditas.



Guardam-se

entre vértebras de silêncio

onde a água decanta a dor

escrita por dentro.






BL

30.06.25