quinta-feira, 31 de julho de 2025

Escuta-me

 





escuta-me
só tu
na vastidão que existe entre
a tua voz e o gesto esquecido dos dias.

 

Pedro e Inês…
sempre tão perto da distância
como quem atravessa séculos
no sopro inquieto da memória.

 

a brisa levanta palavras
desfaz versos

antes de nascerem
e os dedos

rebeldes

escrevem
com a febre de quem ama demais.

 

[meu amor…
um voo interrompido na garganta das aves
um murmúrio que o mar recusou
um adeus que ainda não se pronunciou.]

 

há palavras que se escondem
na covardia do tempo
esperando que tudo
se alinhe

num gesto irrepetível.

 

alguns dias

os barcos desacreditam o horizonte
e os amantes

exaustos
deixam páginas em silêncio
com sangue de todas as promessas escritas.

 

o que resta é isto:
a margem
a sombra da voz
e o poema que se desfaz no vento.







BL

31.07.25







quarta-feira, 30 de julho de 2025

O som da luz em manhã de inverno

 




A luz acorda a manhã  

com passos de algodão.  
Não faz ruído.  
Risca o chão com sombras  
longas
tímidas  
como se tivesse medo  
de acordar a saudade.
 
O frio faz eco nas paredes.  
E a luz  
vai sussurrando cor  
nos contornos da chávena  
na respiração lenta das janelas.  
 
A manhã de inverno  
é um silêncio  
com voz de luz.



BL
30.07.25





 

terça-feira, 29 de julho de 2025

Folha da tarde

 






A tarde encosta-se à janela
na quieta hesitação dos ponteiros.


O sol espalha palavras

que não ouso decifrar
como se a luz tivesse segredos
guardados nos ramos.

 

A rua canta

com passos de água
e os nomes deslizam nas vozes
como folhas à deriva.


O silêncio aperta-me as mãos
com a ternura de quem conhece
cada ausência escondida.

 

Olho o verde

que se eleva.
Tento lembrar-me
do que sou

[ reflexo de quem se vê.]


Talvez o tempo me escreva

devagar
sobre esta página em branco

voz do silêncio

à minha espera.



BL

29.07.25






segunda-feira, 28 de julho de 2025

Nos cantos da casa

  





Há um nome  
que ainda habita os cantos da casa.  
Não se perdeu no silêncio.  
Vive nas frestas do tempo  
nas migalhas da memória  
na respiração suspensa  
de quem chama
sem voz.

Mesmo quando parte
deixa silêncio
com perfume.









BL
28.07.25








domingo, 27 de julho de 2025

Poeta sem mapa

 





Não tenho destino.
Sou feita de desvios
de frases que se perdem nas travessias
como sementes lançadas ao vento
sem garantia de solo.

A linguagem é minha bússola partida
cada verso um incêndio provisório
a iluminar só o suficiente
para tropeçar no próximo silêncio.

Recuso coordenadas.
A dor não obedece a geografias.
O amor não conhece rotas fixas.

Escrevo porque não sei dizer.
Porque o mundo me exige
uma resposta que não aprendi a dar
senão em metáforas quebradas.

Não prometo lógica.
Sou naufrágio com consciência
maré que escolhe afundar
todas as certezas que lhe ofereçam boia.

E mesmo assim
persisto.
Rabisco sobre a pele do tempo
como quem tenta lembrar o nome da luz
antes que ela se apague.

A minha voz não tem endereço.
É errância
é voo sem asa
é rasgo de sombra à procura de lugar.

Se me encontram
não é porque cheguei.
É porque alguém reconheceu
o som da ausência.






BL

27.07.25






sábado, 26 de julho de 2025

Ser corpo e voz

 







A janela entreaberta
deixa o silêncio escorrer. 
 
Lá dentro
pulsa a palavra.  
Informe
desnuda.
 
E nasce
no compasso do gesto 
 
como se o mundo tivesse esperado
o instante  
de escutar.
 
"... e a palavra nasce"
diz o tempo  
sem medo
sem pressa  
como quem aprende
a ser voz.
 



BL
26.07.25







quinta-feira, 24 de julho de 2025

Verbo: observar

 









O rio aprende a despedida
com a paciência das águas que partem

lentamente

como quem sabe
que há beleza também em se perder.


O fim de tarde pendura-se nas árvores
como roupa lavada à espera do vento.


As cores não gritam.
Murmuram promessas
de um amanhã sem urgência.


No sussurro do mar
há lugar para todos os silêncios.


O teu
o meu
e o daquela gaivota

a conjugar o verbo observar.





BL

24.07.25











quarta-feira, 23 de julho de 2025

Vestido de figo e sol

 




Rasguei o inverno dos dedos
para vestir-me da luz que tu trouxeste

um vestido de risos e cheiro a figo
onde a pele respira sem pressa.

Hoje
o tempo é um pássaro entre laranjeiras
tu és brisa que acaricia as folhas
e eu
sou parte do chão que canta com elas.

Há um gato que nos segue na sombra
espectador do sol
a incendiar o telhado das horas.

E por trás do vidro
o mundo sorri por dentro

como uma criança que inventa nomes novos
para tudo o que é 

bonito demais para se perder.




BL

23.07.25







terça-feira, 22 de julho de 2025

Com vagar

 




Deslizo

com vagar
pelas margens do vento
 
nos passos de um nome
que ainda arde.
 
[se vieres
vem inteiro
não te escondas no gume dos gestos
não me deixes só
a tecer ausências]




BL
22.07.25





domingo, 20 de julho de 2025

A suspensão do instante

 




imensa
a estrela sem nome derrama
o silêncio sobre o campo
suspende o tempo
acorda
as raízes

desliza pelas encostas
persiste nas nuvens
oscila

a bruma engole
os contornos
satura
o instante

em baixo

o rio
esconde promessas
rumores
luz quebrada

cada pedra
evoca
memórias intactas
abriga
a noite inteira

na varanda
a pele cansada
espera





BL

20.07.25






sexta-feira, 18 de julho de 2025

Sabia-te vento

 







Senti a pele da água

tocar o fundo da lembrança

fria

e fiel

[ uma língua que não se aprende ] 



Sabia-te vento

nos braços da raiz

quando o chão ainda falava

em pulsações antigas.



Há olhos que colhem

o quase-nada

e fazem dele

eternidade.



No consolo da imagem

o corpo despe-se do peso da armadura.

Não em fuga

mas por desejo de leveza.



E se tudo for ilusão

então que essa me console



como o sopro do mundo

nas cinzas da terra.





BL

14.07.25







terça-feira, 15 de julho de 2025

Entre silêncios

 





Entre o segundo café

e a sombra da tarde

o mundo muda de cor

e o tempo curva-se

sobre si.


Clarões de lucidez

chegam sem nome

sem hora marcada. Relâmpagos

não pedem licença

e trituram o silêncio em mil verdades.


Distingo vultos

dentro da neblina

desenho contornos de ausências


e entendo memórias

sem lembrança.


Como quem abre os olhos

no meio do sono

e reconhece o próprio nome

na voz

de um pensamento esquecido.






BL

15.0725





sábado, 12 de julho de 2025

Van Gogh mordeu-me

 





Dançam os girassóis na boca do lume
pinto com dedos de sombra
os traços impronunciáveis.


São memórias em carne viva
folhas abertas sobre o peito
onde o tempo repousa e sangra.


Dizem que o amor é só miragem
mas eu vi estrelas acesas
nos olhos de quem ficou


e em cada pétala tremem
as promessas que a noite engole
quando o desejo se curva à ausência.


Componho altares de silêncio
e entre cada beijo por inventar
a chama soletra o teu nome.


Van Gogh sorri do fundo da tela.


É preciso ser flor para entender
aquilo que a luz guarda no seu grito.




BL

12.07.25





sexta-feira, 11 de julho de 2025

Fragmento em contraluz

 







Rasguei a ausência

com dedos lentos

como quem se despe do tempo.


Aprendi a pele

na fricção suave dos dias


mesmo os dias que sangravam.



Aquele verão tinha margens de sal

e procurávamos terra

em bocas de fruta

sem polpa

sem perdão.



Tu eras voo

entre raízes.


Eu

um mapa sem norte
a tropeçar em sombras verdes.



Hoje

somos silêncio em trânsito.


O teu olhar

promessa aérea


o meu corpo

véu em combustão.



Neste lado da memória
o sol pisca palavras quebradas.


E a borboleta

imóvel

e sábia


murmura nomes esquecidos
sem idade

e sem língua.



No outro lado do tempo
a tarde escorre


como rio que não sabe
onde começa o mar.






BL

11.07.25








sexta-feira, 4 de julho de 2025

Ritual de permanência

 





Escrever é abrir sulcos

em pedra adormecida



tornar gesto a memória do toque.

Como quem ateia brasas no ventre do escuro.



Num qualquer lugar sem mapas

onde o abismo tem paredes de silêncio



encosta-se o olhar à vertigem

e o corpo habita a lentidão

daquilo que se mantém ausente.



Entre ruínas invisíveis

ergue-se um altar de ecos. Vozes submersas

vibram

na ossatura do tempo.



Nomeia-se o infinito

na espessura da sílaba.



Permanece-se.







BL

04.07.25






quinta-feira, 3 de julho de 2025

Sem destinatário





 

É neste quase-nada

que o corpo reaprende o peso da sombra

o frio da espera

a vertigem de escrever

sem destinatário.



Memórias estilhaçam-se

num tempo interior

que pulsa no silêncio.



Reza-se uma oração

sem fé



apenas para não esquecer a voz.



A espreitar um universo suspenso

entre o instante

e o infinito.



Escavam-se camadas

de uma luz imóvel



num ritual

de existir

entre escombros.





BL

03.07.25







terça-feira, 1 de julho de 2025

Mais de água do que de pedra

 






Um refúgio

à margem

do silêncio.

Mais de água

do que de pedra.

Que molde

dissolva

transporte.

Talvez uma busca

pelo coração secreto

da casa primordial.

Um rio fluido

que não escape entre os dedos.

Beleza líquida

feita de vento e memória

neste lado do tempo.

Um reencontro de palavras

pele

e sal

como quem guarda um frasco de mar

à espera da próxima onda.





BL

01.07.25







Auscultação da ausência

 




havia uma brisa

suspensa no limiar da espuma.

e um eco

circular

a transportar o voo dos pássaros.



um murmúrio.

tão vago.



e a ausência



liquefeita



entre a curva

do teu silêncio.



o tempo gotejava

das minhas mãos quietas

musgos acesos de sombra.




BL

01.07.25