sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Pedi o sol ao outono

 



Hoje

pedi o sol ao outono

roubei ao céu a manhã

abri-a de par em par

soprei a cinza das nuvens

fui sorver a voz do mar.

Embriaguei-me de azuis

reevoquei lugares

fui grão de areia

gaivota proscrita

da solidão que me habita.

Adormeci as sombras

enganei os reflexos

fugi-me

revesti-me de luares.

Fiz-me vento

desfiz tempo

fui voo de pássaro

olhar de criança

inventei um mar de esperança

ainda que seja precário.

Hoje

é o meu aniversário.





BL

17.10.25







segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Entre a água e o verso

 

 



Como se desenha o sal
na margem dos teus olhos
se o mar já não reconhece
a geometria do abraço
nem o nome das conchas
que enterrámos no verão?

 

Há gestos que se perdem
como notas sem pauta
na pele que já não canta
e cartas que o tempo
dobrou em silêncio
no fundo da gaveta.

 

Se abríssemos o peito
à cartografia do esquecimento
e deixássemos


[ainda que com janelas fechadas
as vozes apagadas dos vizinhos
e os retratos sem moldura]


deixássemos
que o poema nos habitasse
como uma sombra leve
no bolso interior da memória

 

o tempo talvez não nos tocasse
com os dedos da pressa.


Só o mundo lá fora
continuaria a correr.





BL

13.10.25





domingo, 12 de outubro de 2025

Depois de ti, o silêncio

 





Quando partes
o silêncio veste-se de cinza


e as sombras
alongam-se
nos muros da memória.


Cada folha que cai
é uma lembrança tua
a dançar
antes de tocar o chão.

 

Não há ruído.
Só o eco do que foste
a deslizar
no espaço onde o desejo se calou.





BL
12.10.25




sábado, 11 de outubro de 2025

Ajustar a pele ao esquecimento

 


 



Caminhas [com os olhos cheios de sal]
e a pele marcada por relâmpagos antigos.
Trazes no bolso o último suspiro da figueira
e o nome [esquecido] de quem em ti floresceu.

 

Perdeste o lume das tardes lentas
[o som das gargalhadas entre as ameixas maduras
ainda ecoa nas pedras da eira]
e com ele o mapa da infância.

 

Não
não se apaga
mesmo que o tempo seja um animal sem rosto.


Não
não se enterram as raízes
do corpo que dançou com o vento
quando o amor era um gesto simples
e o medo apenas sombra de pássaro.

 

E ainda que um dia te deites
sobre o musgo que guarda os segredos da chuva
continuarás a escrever
com os dedos sujos de terra
as constelações que nunca aprendeste a nomear.

 

Tudo o mais é neblina
sobre um espelho partido
que o outono deixou à porta.





BL
11.10.25






quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Vestígios

 



Os corpos ausentes
têm voz. Falam
com o espaço que ocupavam
com o cheiro que deixaram
com o gesto que não aconteceu.

 

A ausência é uma linguagem
feita de vestígios
de ecos
de silêncios que se repetem
como versos sem rima.

 

E
quando escuto
não ouço o que foi dito.
Ouço o que faltou.





BL
08.10.25













Ladainha da Alma em Fôlego Curto





Santa sombra que me segue,
Roga por mim.
São suspiros que não chegam,
Rogai por mim.
Anjo da dúvida,
Que me visita sem nome,
Roga por mim.

Estrela que se apaga antes do dia,
Rogai por mim.
Chama que arde sem lume,
Roga por mim.
Silêncio que grita no fundo,
Rogai por mim.

Paz que não se deita comigo,
Roga por mim.
Caminho que se dobra sem fim,
Rogai por mim.
Voz que não se ouve mas vibra,
Roga por mim.

Coração que se fecha por medo,
Rogai por mim.
Olhar que procura sem ver,
Roga por mim.
Tempo que não cura,
Rogai por mim.

E se não houver santo que me escute,
Que me valha o vento,
Que me valha o poema,
Que me valha o gesto,
Que me valha o nome que ainda não sei.

Amém,
Ou qualquer palavra que sirva
Para continuar.






BL

08.10.25






terça-feira, 7 de outubro de 2025

As mãos do tempo

 



 

De manhã
não chamo pelo sol.
Os dias chegam mudos
sem rosto
sem cerimónia.

 

Não persigo
[como pardais famintos]
o som das promessas
caídas e esquecidas no parapeito.

 

Caminho pelas horas
banais
arrastando nos bolsos
derrotas dobradas como papéis velhos.

 

Envelheço no gesto.
As mãos conhecem
o peso lento
das escolhas.

 




BL

07.10.25











domingo, 5 de outubro de 2025

Excesso

 




Há dias em que o corpo
não cabe em si.
Estica-se
dobra-se
mas continua a sobrar.

A pele guarda
o que não foi nomeado
como se cada poro
fosse uma sílaba retida.

 

O toque pesa.
O gesto falha.
O corpo quer ser abrigo
mas é ruína.

 

Aprendi a respirar
como quem tenta conter
um mar dentro de um copo.

 

Há memórias que se alojam
nos ossos
há saudade que se esconde
na curvatura dos ombros.


E por fim
quando tudo se reduz a um tremor
sei que o corpo não é limite.


É excesso.
Excesso de desejo
de dor
do invisível que molda o que somos.





BL

05.10.25









A minha rua






O meu passo por cima da sombra.

 

O silêncio dos vizinhos
esse modo esquecido
de se esconderem atrás das cortinas.

 

A minha rua
a espera por cima da sombra.

 

A voz urgente
ou o eco dos passos
esse eco sem destino
que vai do cansaço da pedra ao cansaço do corpo.

 

A minha rua
o meu passo por cima do tempo


por cima do tempo
os fios da chuva...

 

A espera por cima da sombra
esta ausência e este ruído.


Procuro lume para o meu regresso.

 

O meu passo por cima da sombra
esta sombra gasta
que se arrasta pela memória.




BL

05.10.25







 

sábado, 4 de outubro de 2025

Embaciado

 


 


O espelho não devolve nada.
A pele é uma superfície neutra
onde os dias se encostam
sem deixarem marca.

 

Falo comigo
como quem escreve num vidro embaciado.
A frase desaparece
antes de ser lida.

 

Há um cansaço que não se nomeia
mas que pesa nos ossos
como se o tempo fosse um líquido
sem recipiente.

 

E ainda assim
continuo a vestir-me
como quem espera visitas.





BL

04.10.25












A arte de cair

 




Caí tantas vezes
que aprendi a subir.


O chão é apenas
um lugar de passagem
um ensaio para o voo.


A queda é uma forma de ascensão
quando se cai para dentro
quando se toca o fundo
e se encontra o céu.


Não há erro no salto.
Há movimento.

 

E
no desequilíbrio
há um portal que só os caídos veem.





BL
04.10.25







sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Substantivo

 





Estás aqui
mesmo quando não estás.


A tua ausência tem forma
tem peso
tem sombra.

 

És o paradoxo que me habita:
não és
mas és.
Não estás
mas ocupas.

 

E nesse espaço invisível
existe um mundo inteiro
feito de ti.





BL

03.10.25







Os vãos da memória

 



Tudo o que não se conclui
permanece.


Como o gesto que não se deu
como o voo que falhou
mas deixou rasto de vento.

 

Os vãos da memória
são espaços habitados
por tudo o que não coube no tempo
por tudo o que não se disse
mas se escreveu no corpo.

 

E tu
que escutas o silêncio
sabes:
há beleza no que não se resolve
no que se cala
há linguagem
há presença no que se ausenta.

 

Este é o lugar.


Aqui

entre o sal e a sombra
entre o voo e a queda
entre o louco e o lúcido
a poesia respira

como quem vive entre mundos.





BL

03.10.25





terça-feira, 30 de setembro de 2025

Mas tudo arde

 




Não há fogo
mas tudo arde.

Os dias acumulam-se
como folhas húmidas
sem cor
sem som.

Dentro de mim
há uma cidade abandonada
com luzes acesas
em casas vazias.

E ainda assim
continuo a acender velas
como quem espera

tocar o silêncio
e que a escuridão aprenda a falar.





BL

30.09.25





domingo, 28 de setembro de 2025

O último suspiro da página

 




 

Talvez o último suspiro

da página.

O céu não acolhe asas.

Lembranças anónimas

dormem entre os dedos.

 

Talvez um limiar

entre o visível

e a ausência


[essa presença informe

que paira entre o indizível

e o que se perdeu]

 

entre o voo

que não acontece

e o silêncio

que se instala.

 

Nesse instante

quando o tempo nos suspende

e tudo se desfaz em cinza.






BL

28.09.25





domingo, 21 de setembro de 2025

Habito-te






Tu és lugar.
Não te atravesso.
Habito-te.

 

Habito-te
como quem habita o tempo.


Sem pressa.
Sem mapa.


Com o corpo inteiro

entregue à deriva




BL

21.09.25




 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

O centro do relâmpago

 






A paisagem do mundo fechou-se em círculo
quando te vi

imóvel

ao fundo


como se o caos tivesse uma pele lisa
e nela repousasse a harmonia.

 

Sob a água do lago
a quietude respirava o teu nome.
Montanha em silêncio
força oculta no teu gesto mínimo.

 

Há em ti coisas que só o tempo revela.
Filigranas de sombra
linhas que o olhar não alcança
sem se perder.

 

Ceguei por te ver demais
por tocar o centro do relâmpago
em noite sem nuvens.


Agora

há cores que se movem
dentro dos meus olhos
quentes e frias


como o teu perfume na trovoada
que chega mansa no fim da primavera.

 

Deito-me sob a árvore onde o fruto
nos deu a boca.


Bagas brancas caem como promessas
à volta do nosso silêncio.
A luz trespassa a sombra
e encontra a tua pele.

Um pássaro soprou-nos um segredo
em troca de amor.

 

E eu vi tudo isso
antes de cegar por ti.






BL

19.09.25





 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

No intervalo entre os versos

 






A palavra já foi dita
rasgada
curvada
mastigada.


Agora
permanece.

 

Não há mais o que escrever.
Há o que escutar
no intervalo entre os versos.

 

E nesse espaço


onde o tempo se dobra
sobre o que não foi caminho


a poesia ainda respira.






BL

18.09.25






quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Fica-me no silêncio

 






Fica-me no silêncio
sussurrou a pedra.
Não havia passos.
Nem sombra.
Só a pedra
[o peso]
Guardando no frio
a forma antiga do toque.





BL

17.09.25