segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arquivos líquidos do corpo

 






Os dedos passam pela pele da água

e esquecem que são corpo.

Escuto.

É a infância

a sede

os nomes de quem partiu

sem dizer adeus.



Há vozes que só a água entende.



Pulsam

na vibração dos gestos que permanecem

transfigurados.



Tenho rios por dentro

estações que não chegaram a acontecer

e um mar antigo

que se move

quando fecho os olhos.



Há vozes que só a água guarda.



O sal sabe histórias do meu nome

antes de mim.



Cada lágrima é um mapa.



O corpo lê-se em camadas de sal.

As quedas

os toques

as ausências que molharam os ossos.



Há palavras que não sabem ser ditas.



Guardam-se

entre vértebras de silêncio

onde a água decanta a dor

escrita por dentro.






BL

30.06.25









domingo, 29 de junho de 2025

Liturgias do silêncio







Em cada silêncio

um olhar suspenso

espiral de sombra e resina.


Linguagens oblíquas a dormirem

no dorso da luz.


Nomes de outrora

peixes de papel

a desabarem no hálito do tempo.


Os passos progridem

fendas na terra onde crescem

flores de ausências.


Lugares antigos de pele

e de instantes


ecos translúcidos

quase canto

quase cinza.


E aquilo que perdura

afunda-se em presságio.






BL

29.06.25









sexta-feira, 27 de junho de 2025

Ladainha do corpo aceso

 







Diz

corpo

onde começa o incêndio.



Diz

boca

o nome que queimaste.



Diz

pele

onde mora a ausência.



Arde.

Arde o que se cala.

Arde o que se lembra.



Repete

terra

a dor dos passos.



Repete

vento

o sopro que fugiu.



Repete

tempo

aquilo que não cede.



Arde.

Arde a voz.

Arde o toque.

Arde o altar do silêncio.



Clama

peito

por um céu que não responde.



Clama

gesto

por um fim que se recuse.



E o que sobra

reza.






BL

27.06.25








quarta-feira, 25 de junho de 2025

Cartografia do adeus

 







Existem palavras que ardem

antes de serem pronunciadas.


O teu nome.


Dentro do teu nome

comecei a riscar

as margens do mundo.


Com a caneta embriagada

de ausência

e a luz desligada

pela pressa dos dias.


A manhã encostava-se

às paredes


como um animal faminto

perdido entre a memória

e o instinto.


Nenhuma teoria me valeu.

Nem Freud

nem mapa astral.


O amor não cabe em esquemas

nem a dor se resolve

por equações.


Aprende-se tudo ao contrário.


Primeiro o fim

depois o presságio.


E entre os dois

o fumo


a engolir os pulmões

devagar

como quem aprende a morrer

por dentro.


Dizem que se pode morrer

de sede

no meio do mar.


Eu morri

de ti

com todas as letras

que te escrevi

e

    que

            nunca

                       soubeste

                                        ler.






BL

25.06.25

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Entre a raiz e o céu

 




Moves-te entre sopros de tempo

e frases suspensas

às vezes distraído com mil ruídos

num compasso de incerteza

e desassossego.


Caminhas entre a raiz e o céu

seiva invisível entre as margens

do que és

e do que te sonhas.


Respiras a memória dos retratos

vidro líquido

lume aceso em lareira de sílabas

para que o verbo se desfaça

e volte a ser semente.


E eu

guardiã de murmúrios

esperarei por ti

com um espaço guardado no tempo


como quem bebe um silêncio morno

ao fim do dia.




BL

23.06.25












quinta-feira, 19 de junho de 2025

Antes do chão

 






O tempo encosta-se

ao meu corpo

devagar.

Já não dói

é peso

como um nome a esquecer.


Os passos desfazem-se

antes de tocarem o chão

e o eco

[ se ainda existe ]

aprendeu a calar-se.


A luz não ilumina.

Passa por mim

como mãos que não sabem despedir-se.


Há uma morte que não chega.

Ocupa o espaço

entre o meu olhar

e o mundo.


A despedida vem sem rosto.

Acontece dentro de mim.

Um desfiar lento do que sou.

Não há corte.

Somente ausência

a escorrer pelos dedos.


Algo se molda

em silêncio

no outro lado do instante.


Tudo o que fui

perde contorno.

Tudo o que vem

ainda me desconhece.


E aqui

neste intervalo do quase

sou pele

a (des)aprender a memória.






BL
19.06.25









sexta-feira, 13 de junho de 2025

Arquitetura líquida

 




Nada repousa.

As formas dissolvem-se no tempo

escorrem


[ escorrem ]


pelas frestas da incerteza.


O chão flutua.

Flutua


[ flutua ]


perde-se


ilhas de matéria desfeita

arquitetura líquida

fluida

fundida

onde os mapas se desenham

e apagam.


Corpos são sombras em suspensão.

Reflexo incerto.

Sombras



[ sombras ]



 vacilantes.



E o verbo

outrora raiz

ondula

breve

dilui-se

desfaz-se.


No silêncio

onde tudo se transforma

somos ecos

ecos à deriva

vestígios de um lar sem margens.







BL

13.06.25














terça-feira, 10 de junho de 2025

Espinhos de rosa branca em páginas de algodão

 




Ninguém toca o pergaminho intacto.

O papel

brando e impassível

esconde cicatrizes

que não se confessam.



No ventre de páginas desfeitas

sangram raízes de um nome esquecido

silabário rasgado em espinhos vorazes.



O algodão sufoca o verbo

repousa como véu sobre um tempo morto



[ fantasma mudo de histórias sem retorno. ]



Entre frestas

o silêncio trama a sua emboscada.



E a rosa

espectro pálido

devora o espaço

com a sua sede branca.





BL

10.06.25








domingo, 8 de junho de 2025

Traz-me cor

 







Traz-me cor

enche-me o peito de madrugada

espalha incêndios na pele fria

desenha marés vivas

onde o silêncio me habitou.



Traz-me cor

como quem rasga o silêncio

como quem semeia tempestades

e colhe relâmpagos num mar a perder de vista.



Dá-me a febre das pétalas amarelas

o grito das folhas ao vento

a dança insaciável de sóis em fuga.



Que a luz consuma os meus medos

que os dias derramem desejo

que a noite se curve ao fogo

sem resistência.



Dá-me cor

e traz contigo esse fio de lume

que ainda arde nas entrelinhas


para fazer vibrar

o que nem sempre se nomeia.




BL

08.06.25








quinta-feira, 5 de junho de 2025

Seguiremos pelo que há de vir

 





Seiva.

Seremos seiva.


Renovação da matéria

após a invernia.


Dobraremos a esquina

e seguiremos

pelo que há de vir.


Dobraremos a esquina

onde o vento ensaia promessas

onde a luz dança nos muros gastos

e as sombras se escondem do tempo.



Seguiremos pelo que há de vir.



Pela seiva que desperta nos troncos

pelo ouro que repousa na pele da tarde

pela vertigem

de não saber

de querer sentir.



O horizonte acena sem pressa

como quem sussurra segredos antigos.



E nós

movidos por uma voz qualquer

seguimos.



Apenas seguimos.





BL

06.06.25







terça-feira, 3 de junho de 2025

Não olhes para o limite do chão

 






Não olhes para o limite do chão.

O que há ali

senão a promessa de um fim?



Um contorno imposto

uma linha fabricada pela urgência da contenção.



Não olhes para o limite do chão.

Porque há um outro espaço

onde a pele respira sem nome



onde a vertigem pode ser

voo sem destino.



Há uma fissura no tempo

uma fresta por onde escorre a memória.

Um grito sem forma

a rasgar a carne do silêncio.



O chão não é a resposta.

Nunca foi.



O chão é só um eco

um reflexo

um palco onde o medo ensaia os seus passos



enquanto a luz é dança

livre

leve

num horizonte

em fogo.






BL

03.06.25







segunda-feira, 2 de junho de 2025

Não saias desta desordem das coisas

 






Não fujas.

Ainda há sentido no que se espalha

nos cacos que não se encaixam



mas brilham

na luz oblíqua do dia.



O caos sustenta o que pulsa

os objetos empilhados

sem ordem

ainda contam histórias de mãos que passaram

de vozes que permaneceram.



O que é harmonia

senão o intervalo entre dois desencontros?



Se tudo se alinha

onde sobra espaço para o que vive?



Não saias.

Fica na dobra do improvável



onde as coisas respiram

sem pedirem permissão.





BL

02.06.25








domingo, 1 de junho de 2025

Tira-me deste corpo insuficiente

 






Há um limite na pele

uma fronteira de ossos

que não contém o que pulsa.



O espaço dentro de mim é estreito

um grito sufocado

um corredor sem saída.



Se ao menos fosse outro

o tempo desse corpo



se ao menos fosse vento

e não cárcere

a matéria.



Mas prossigo

palavra incompleta



à espera da sílaba exata

que me desdobre em vastidão.





BL

01.06.25







Avisa-me, quando eu puder saber o teu nome

 



Quando a noite for mais do que ausência

e eu souber ler o silêncio

nas entrelinhas do vento



quando as palavras deixarem de ser promessa

e o tempo não for apenas espera



quando a tua voz não for apenas um eco

e eu puder tocar a forma do instante

sem medo de que ele se desfaça



quando eu souber se a tua ausência é escolha

ou desígnio de algo maior



então

avisa-me.



Avisa-me

quando o tempo permitir

quando o vento decidir que já não é cedo

nem tarde demais.



Avisa-me.

Quando o nome já não for só palavra

mas gesto

pele

reconhecimento.



Sem medo.



Quando eu puder chamar-te

pelo teu nome



então

ficarei a saber que estamos

a flutuar

agarrados a este chão.










BL

01.06.25